segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O filho da mãe e o filho da puta

Dias atrás, recebi a visita de um amigo. Conversamos, como sempre, sobre literatura, mulheres e outros bordéis. Ele viu na minha prateleira os livros do Bernardo Carvalho – todos, com exceção de O sol se põe em São Paulo, que ainda não li. Fiquei surpreso quando comentou que não gostava nem um pouco dos livros de B.C. Achava-o metido à cosmopolita, “presunçoso demais”, como “a maioria dos paulistas”. Só faltou chamá-lo de “filho da puta”. Não concordo com a afirmação desse amigo, que por sinal é um ótimo lingüista e exímio professor. Difícil julgar a pessoa pela obra. Por exemplo, ao ler Amor Natural, de Drummond, não posso dizer que o poeta era pervertido, ou julgar Dalton Trevisan um tarado por ter escrito A polaquinha e O vampiro de Curitiba. Agora se a literatura de B.C. é presunçosa, isso são outros 500. Presunçoso é aquele que é pretensioso, orgulhoso, metido. Acho que não é o caso da literatura de Bernardo Carvalho. É claro que o projeto literário do escritor, que também é colunista da Folha de São Paulo, é ousado para os padrões brasileiros, estando muito mais próximo do labirinto narrativo de Jorge Luis Borges, e de outros escritores cosmopolitas, do que das palmeiras e dos sabiás de Gonçalves Dias. Acostumados com “macumbas para turistas”, “Tietas”, “Gabrielas”, e outros carnavais, tomamos um susto com os jogos literários propostos pelo autor de Nove Noites e Mongólia. Jogos literários que contam sempre com personagens desterritorializados, sempre em movimento, em constante deslocamento.
Anderson Luis Nunes da Mata, no texto “À deriva: espaço e movimento em Bernardo Carvalho”, observa que os personagens do escritor estão sempre em trânsito: “migrando, viajando, ou, simplesmente, passando, esses sujeitos não têm uma territorialidade definida”. Em Nove Noites, o narrador empenha-se numa viagem ao Xingu à procura dos passos de Buell Quain, um antropólogo americano que se matou quando tentava voltar para a civilização. Em Mongólia, um diplomata brasileiro recém-chegado da China é enviado à Mongólia para procurar um fotógrafo desaparecido. Em Teatro, romance dividido em duas partes, o narrador paranóico, metido à terrorista, foge para o país de seus pais. Nas palavras de José Geraldo Couto, este não é um romance sobre a paranóia; “é um texto cuja própria construção reproduz o mecanismo da paranóia, entendida como tentativa de dar sentido ao mundo a partir da leitura parcial e distorcida de seus fragmentos”. Diga-se de passagem, um significado que nunca é consumado. Em todos os casos, a impossibilidade de atingir o real é sintoma de uma narrativa que conduz o leitor a jogos narrativos cada vez mais intrincados.

Acabo de ler O Filho da Mãe, seu mais recente romance. Em 2007, o escritor passou um mês em São Petesburgo para escrever uma história de amor para a coleção “Amores Expressos”, idealizada pela Companhia das Letras. Eduardo Simões, na Folha de São Paulo, lembrou que Carvalho, quando estava em São Petesburgo, foi influenciado pelo livro “Vida e Destino", de Vassili Grossman: “O enredo de Grossman - que fala, entre outras coisas, de uma mãe forçada a despedir-se do filho e do amor de uma jovem, em meio à Segunda Guerra - guardava coincidências com a trama que Carvalho tinha em mente: uma história de amor (aqui, entre dois homens) e uma reflexão sobre o amor maternal e sua relação com a guerra, inspiração que o autor teve quando, em suas pesquisas, soube do Comitê das Mães dos Soldados, que ajuda jovens enviados à Tchetchênia”. Comitê que, por sinal, vai aparecer ao longo de toda a narrativa de O Filho da Mãe.
Em O Filho da Mãe, Bernardo Carvalho, à maneira de seus livros anteriores, mescla diversas vozes e pontos de vista. A diferença é que neste livro, o escritor narra em terceira pessoa, o que não é comum em sua obra. Esse foco narrativo permite que Carvalho mergulhe no íntimo das fortes personagens que criou, enfocando o sentimento de orfandade e de desamparo. Tudo em meio à barbárie da guerra da Tchetchênia e da reconstrução de São Petesburgo às vésperas de seu terceiro centenário. Mas a guerra é apenas pano de fundo para desenvolver uma narrativa sobre a figura da mãe, nas diversas histórias que se entrelaçam no livro. O Filho da mãe nos convida a reler com cautela a obra de Carvalho, - o talvez nos faça repensar aquele preconceituoso argumento de que sua literatura é metida à cosmopolita e presunçosa. Esse argumento é geralmente falacioso quando o que está em questão é a literatura de B.C. – cuja mobilidade desarma, a partir do modus operandi de sua narrativa, discursos estáveis, dogmáticos e tradicionais.

c. moreira

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