segunda-feira, 14 de setembro de 2009

A BURGUESIA FEDE OU APONTAMENTOS PARA UM DISCURSO PARASITA



“Quando eu sair daqui, vamos nos casar na fazenda da minha feliz infância, lá na raiz da serra. Você vai usar o vestido e o véu da minha mãe, e não falo assim por estar sentimental, não é por causa da morfina. Você vai dispor dos rendados, dos cristais, da baixela, das jóias, e do nome da minha família”. Quem fala é Eulálio d’Assumpção, o narrador de Leite Derramado, de Chico Buarque, lançado em 2009.
O narrador encontra-se em um hospital, à beira da morte. Ao longo da narrativa, vai desfiando um relato impreciso - diante do qual não temos certeza alguma. É nesse aspecto que gostaria de me ater. Gostei muito de Estorvo – kafkiano a meu ver. De Budapeste não guardei boas impressões. Fazer o quê! Gosto é gosto e não se discute. Leite Derramado, todavia, me chamou a atenção. Há uma forte tendência na literatura contemporânea da narrativa de memórias. E o mais interessante desta linhagem é que alguns escritores vêm problematizando sobre o gênero de maneira bastante criativa. Silviano Santiago, por exemplo, é um bom escritor de memórias mentirosas – ou como ele mesmo intitulou em livro, um “falso mentiroso”. Se é um falso mentiroso é porque as memórias são de “verdade”. Um ponto de interrogação (?). Como bom leitor de Derrida, Santiago tem consciência da dimensão lúdica da literatura.
Miguel Sanches Neto, em seu último livro, A primeira mulher, também se dedica às memórias de um professor universitário (que ele é) que reencontra a primeira namorada e se envolve numa série de aventuras, que transformam o livro numa interessante reflexão não só sobre a narrativa de memórias, mas principalmente sobre a sobrevivência do gênero policial.
Para Gregório Dantas, o relato de Eulálio, em Leite Derramado, não possui contornos claros: “A começar por sua interlocutora – por vezes uma enfermeira, por outras sua filha – e pelas limitações de sua memória, que impõe um ritmo fragmentado e repetitivo ao discurso memorialista”. Esse tom repetitivo do narrador é proposital – e esse é um aspecto interessante do livro – já que se trata de um velho que, pelas limitações de sua memória, mistura acontecimentos, repete histórias, transformando-as, colocando, assim, o leitor em um espaço de indecisão, - o que toda a boa literatura consegue fazer. É o que, de certa forma, Bernardo Carvalho consegue desenvolver muito bem em um livro como Os Bêbados e os Sonâmbulos, em que o narrador, ao descobrir que tem um tumor no cérebro – que mudará progressivamente sua personalidade – vai mergulhando nas armadilhas de sua própria memória. Esse narrador contemporâneo é um narrador desterritorializado, posto sempre em suspeita. É o caso de Eulálio d´Assumpção. O narrador de Chico Buarque é arrogante: “Sempre associando seus afetos às posses da família, o narrador exibe um indisfarçado orgulho da longa tradição senhorial de que faz parte” (citação de Gregório Dantas) (Nesse sentido, aproxima-se do narrador do último romance de Silviano Santiago, “Herança”). Por meio da voz de Eulálio, Chico Buarque traça um panorama da sociedade brasileira ao longo do século XX. Ou melhor, um panorama da elite, da burguesia em decadência. Cazuza dizia na música que a burguesia fede. E não é diferente em Leite Derramado, em que os preconceitos contra negros e mestiços são abordados em abundância. Eles aparecem nas entrelinhas, mas significam. A mãe do narrador, por exemplo, questiona a classe social e a raça de Matilde, jovem que se casaria com Eulálio: “(...) de saída me perguntou se por acaso a menina não tinha cheiro de corpo. Só porque Matilde era de pele castanha, era a mais moreninha das congregadas marianas que cantaram na missa do meu pai”. O narrador, mesmo aceitando a mistura de raças na sociedade, e confessando que se fez um adulto sem preconceitos devido à convivência com o negro Balbino, um amigo de infância, decepciona-se ao ouvir a namorada de seu bisneto o chamar, no momento do amor, de “negão”. As questão sociais abordadas por Chico Buarque, que é filho de um renomado sociólogo, são bem desenvolvidas. Mas o que chama mais a atenção no livro é justamente o desfiar da narrativa, a maneira como Chico desenvolve o texto.
Foucault, em um interessante ensaio intitulado “Por trás da fábula”, de 1966, faz uma distinção entre a fábula e a ficção. A fábula é o que é contato (episódios, personagens, funções que eles exercem na narrativa, acontecimentos). A ficção é o regime da narrativa, os diversos regimes segundo os quais ele narra; por exemplo: a postura do narrador em relação ao que ele narra, e mesmo a “presença ou ausência de um olhar neutro que percorra as coisas e as pessoas, assegurando sua descrição objetiva (...) discurso repetindo os acontecimentos a posteriori ou duplicando-os à medida que eles se desenrolam”. Esse parece ser o caso de Leite Derramado. Mais preocupado do que contar uma história, Chico Buarque parece mergulhar profundamente no regime da narrativa, o que de certa forma ele já vinha exercitando em seus livros anteriores. Ao colocar em xeque o domínio da narrativa linear, ou mesmo daquela em que o narrador é o senhor do que narra, o escritor consegue potencializar outros modos de escrever, e também outros modos de entender o gênero memorialístico na literatura. Chico parece, assim, estar mais preocupado com a ficção do que com a fábula. Que bom! Para finalizar esses apontamentos a guisa de uma conclusão, gostaria de relembrar o que Foucault nos diz. Para ele, o regime da ficção está povoado de “discursos parasitas”, discursos que muitas vezes foram obliterados, ou vistos de maneira pejorativa pela instituição da literatura, em momentos específicos da humanidade. Foucault nos diz ainda que somente depois que novos modos de ficção foram admitidos na obra literária é que se tornou possível o ato de ler. Por isso, não estou preocupado com a história de Eulálio, ou mesmo com aqueles que enxergaram no livro um discurso enfadonho e repetitivo. Estou mais interessado na ficção arquitetada por Chico Buarque. E se ela é um estorvo, ou um leite derramado, é porque é um discurso parasita. Uma ficção e não uma fábula.

c.moreira

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