segunda-feira, 14 de setembro de 2009

SUICÍDIOS EXEMPLARES E FRACASSADOS



Alguém disse um dia que o autor precisa morrer para que nasça a escritura. O suicídio talvez fosse uma boa opção. A lista é grande. Silvia Plath, Ernest Hemingway, Ana Cristina Cesar, Torquato Neto, só para citar alguns. No entanto, um suicídio mal-sucedido é uma fonte de onde pode brotar a boa literatura. Alan Pauls, comentando o mais recente de Enrique Vila-Matas, Suicídios Exemplares, observou que a idéia de não conseguir se matar nos faz pensar em incapacidade, fraqueza, impotência radical: “e, no entanto, é justamente essa impossibilidade que coloca os personagens de Suicídios Exemplares em ação, que os enche de inspiração, humor, ansiedade, adrenalina”. Nesse sentido, a idéia do suicídio não consumado não é sinônimo de derrota: é um “princípio de potência”, para usar uma expressão de Alan Pauls. Para Vila-Matas, só os suicídios mal-sucedidos – exemplares - são dignos de serem narrados, por fugirem do lugar comum do ato – apesar de que um suicídio nunca será um lugar comum (como a boa narrativa) – será sempre abjeto e sublime, fascinante e apavorador.
No primeiro texto que compõe o livro, e que poderia ser lido como uma espécie de prefácio, ou de um mapa que nos leva a lugar nenhum, o narrador afirma pretender com o livro se orientar no “labirinto do suicídio”. No entanto, o labirinto tem um aspecto bastante diferente do suicídio. Um labirinto tem muitas entradas e quase nenhuma saída; já a vida tem uma única entrada e muitas saídas. E a literatura? A narrativa, tomada como uma espécie de viagem – tal como aquela de Pessoa a perder países – não deixa de ser um elogio à vida, tal como nos livros anteriores desse prosador catalão (ver Mal de Montano, comentado neste blog). Se o narrador desenha um mapa no livro, cabe ao leitor não necessariamente interpretar o significado do mapa cartografado, mas perder-se na selva da escritura: “deixar que o leitor projete seu próprio mundo interior sobre o mapa secreto e literário deste itinerário moral que aqui mesmo já nasce suicidado”. A frase é elucidativa, Vila-Matas sabe do que está falando.
O crítico Luis Horácio publicou recentemente no jornal Rascunho um interessante ensaio sobre Suicídios Exemplares. No texto, observa que Vila-Matas produziu histórias que “flertam com o surrealismo, com o realismo, não esquecem o romantismo e o existencialismo sartreano. Não há pessimismo, tampouco, auto-ajuda: viver está longe de ser um navegar no mar de águas límpidas, mas também não é festa a ser abandonada tão logo se chegue”. É Drummond dizendo para Carlos: “Não se mate, Carlos, não se mate, o amor é isso que você está vendo... hoje beija, amanhã não beija”. Assim como em Mal de Montano, em que o leitor encontrará a doença literária, a própria vida transformada em literatura, e como em Bartleby e Companhia, (que, aliás, o escritor, crítico e jornalista José Castello confessou ser um dos livros mais geniais que já leu) em que a impotência de escrever é levada ao extremo, as personagens de Suicídios Exemplares acabam por levar a literatura para um horizonte além do cotidiano e do comum – ou mesmo fazendo do cotidiano alguma coisa exemplar, como no conto “Rosa Schwarzer volta à vida”, em que uma dona de casa, que também é funcionária de um museu, imagina diversos tipos de suicídio, nunca cometendo nenhum. Por fim, depois de beber uma garrafa de cianureto (ou o que ela imaginava ser cianureto) durante a jornada de trabalho, sente que cometeu o suicídio: “Com um único e fulminante gole ingere o veneno, e quase de imediato o tambor a envolve com a mais calorosa sensualidade, ainda que também com alguma brutalidade, porque tem a sensação de que caiu morta”. Rosa costumava apreciar um dos quadros do museu. Sabia que o quadro a convidava ao suicídio. Se ela o cometesse, entraria no mundo do quadro. Depois de tomar o líquido, decide cometer novamente o suicídio. Se morresse no quadro, voltaria à vida. E é o que faz (ou não?). Talvez a garrafa não guardasse cianureto, talvez fosse apenas uma bebida alcoólica. Talvez nada disso tivesse acontecido. Talvez fosse apenas literatura. E é no reino do TALVEZ que circula a narrativa de Vila-Matas. É também por isso que ela chama tanto a atenção.
Se os suicídios são fadados ao fracasso, isso não significa que a literatura também o seja. É preciso que os suicídios não aconteçam – caso contrário a literatura não nasceria, e mesmo que nascesse seria apenas uma marcha para o ponto final, saberíamos de antemão que o livro seria tão somente um desfile monótono para a morte (Se Ulisses não se perdesse e voltasse logo para casa, não haveria a Odisséia). E por mais que a literatura louve a morte, é para a vida que ela se dirige. É por isso também que o livro surpreende. Os dois últimos contos, em um momento que já estamos quase acostumados com a (sobre)vivência das personagens, conseguem fugir do lugar comum. É que neles a morte “realmente” acontece. No penúltimo, com o homem que planejou minuciosamente o seu suicídio, mas foi pego de surpresa pela morte antes de praticar o ato – o suicídio não acontece, mas a morte chega, como a punir o homem por querer abandonar a vida. O último não carece de comentários. É um fragmento de uma carta (imaginária ou não?) de Mário de Sá-Carneiro, dirigida a Fernando Pessoa em 1916, antes de o escritor português cometer suicídio. Diz Mário numa das passagens da carta: “Mas não façamos literatura”. Torquato Neto disse o mesmo, de outra forma. Antes de morrer, escreveu o seguinte bilhete para a mulher: “AMOR, pra mim chega!”. Cometer o suicídio é apagar todas as possibilidades de uma futura escritura e ao mesmo tempo torná-la viva a partir da morte. Não cometê-lo, como fazem a maior parte das personagens de Vila-Mata só pode ser um elogio à vida, à sobrevivência do homem e da literatura. Talvez seja ainda a forma mais adequada de se fazer uma obra.
c. moreira

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