segunda-feira, 14 de setembro de 2009

GRAN CABARÉ DEMENZIAL OU O GRANDE CIRCO DE HORRORES

Charles Feitosa, em um artigo publicado na revista Cult, em novembro de 2005, observou que “filosofia não se faz apenas com conceitos, mas também com imagens”. O filósofo escreveu a frase pensando no filme Freaks, do cineasta norte-americano Tod Browning, realizado em 1932, e baseado no conto “Spurs (1923), de um escritor chamado Tom Robins. Na época, o filme foi considerado pela crítica como um dos mais macabros já realizados. Foi proibido na Inglaterra durante cerca de trinca anos até ser considerado um “cult” na década de 60, no Festival de Cinema de Cannes. Diz Feitosa sobre o filme: “À primeira vista, o que causa tanta estranheza é o fato de o diretor não ter usado atores que simulassem desabilidades corporais por meio de máscaras, maquiagem ou fantasias, mas ter escolhido pessoas efetivamente portadoras dessas desabilidades”. Feitosa pergunta: “Trata-se, afinal, de uma mera exploração comercial do grotesco ou podemos aprender com esse filme a desenvolver um olhar diferente sobre o que é considerado feio?”. O crítico, no final do artigo, chega à seguinte conclusão: Freaks permanece altamente recomendável: “O filme expõe o sentimento de comunidade daqueles seres, que paradoxalmente não construíam suas identidades por meio de suas desabilidades, ou seja, pela doença ou pela falta, mas sim, afirmativamente, pela convivência diária do circo”. Assim, não pretende curar nem esconder o feio, mas o assume enquanto tal: “De que tipo de nós você quer se tornar um?”. Cito este texto apenas para chegar a um outro lugar.
Em 2007, uma das boas revelações da literatura brasileira, Veronica Stigger lançou o seu Gran Cabaré Demenzial. Além de escritora, a jovem Veronica é também professora universitária e excelente crítica da literatura. Quando fazia suas pesquisas Em Roma, na Itália, a autora gaúcha se deparou com um cartaz, em que estava escrito: “Gran Cabaré Demenzial”. Na hora, sacou o título do livro: “Percebi que esse título era perfeito para agrupar (e até mesmo definir) o conjunto de textos que eu estava escrevendo (...). Comecei a pensar no livro como uma espécie de teatro-revista em que há uma sucessão de diferentes tipos de apresentações. Por isso ele não tem índice, tem programa” (Estado de São Paulo – 25 de junho de 2007 – Caderno 2 – D3). Na Itália, a expressão Cabaré serve principalmente para uma festa em que há uma série de espetáculos numa mesma noite. Espetáculos de dança, música e circo. E assim Veronica organizou o livro.
Michel Foucault, no posfácio que escreveu para a obra Tentações de Santo Antão, de Flaubert, em 1964, observou que, mais fecundo que o sono da razão, talvez o livro engendre o infinito dos monstros: “Diante do eremita quase mudo, desfilam pecados, tentações, divindades, monstros – cada um saindo por sua vez de um inferno onde todos estão deitados como em uma caixa”. Talvez o mesmo aconteça no livro de Veronica Stigger. Em Gran Cabaré Demenzial, a autora alterna textos mais longos com outros que beiram o desaparecimento da escritura. Esses textos extremamente concisos poderiam ser lidos como “vinhetas ou esquetes” (como sugeriu a própria escritora) que permeiam o seu desfile de horrores, como em Freaks, de Tod Browning. João Adolfo Hansen observou que as personagens de Veronia Stigger no livro “vivem clichês narrativos esvaziados, onde recebem e dão porradas, perdem pedaços, aumentam de tamanho e diminuem, metendo-se em buracos, adaptando-se a resíduos, escorrendo”. Ou seja, vivem fora de si, procurando uma outra comunidade possível, já que a sua tornou-se inviável. E é nesse ponto que o livro torna-se mais político e filosófico. Com isso não quero sustentar que Veronica faz panfletagem. Quero apenas observar que a sua literatura responde de maneira eficiente a questões políticas e filosóficas.

Manoel Ricardo de Lima, em um artigo publicado no Diário Catarinense, em maio de 2007, comenta que Veronica arma nesse livro um gesto descabido, debochado, para “fazer uma leitura da lógica imprevisível dos mitos, como conceito e como experiência, e muito ainda e tanto um nonsense que se fulgura como um contramovimento ou um antipensamento a certo prisma ordinário de uma ordem social vinculada a uma grande civilização que se depara com seu próprio nojo, com seu próprio desejo”. Dessa maneira, Veronica aponta para a falência de uma vida coletiva ou mesmo individual. Questão que parece central em parte da boa produção literária contemporânea: “Que comunidade queremos para nós?”, “Que comunidade ainda é possível?”. No primeiro texto, a personagem Domitila perde os pedaços de seu corpo em um passeio de carro com seu namorado. E não se importa com isso. Em outro, uma mulher é tragada pela escada rolante. Em “Cubículo”, um casal, preocupado em arrumar espaço para os livros, muda-se do apartamento para o banheiro, do banheiro para uma privada, da privada para um intestino. O desfile de grotescos, como sugeriu Foucault sobre as Tentações, de Flaubert, é o desfile de Gran Cabaré Demenzial. É o desfile de uma comunidade em busca de outra. Mas neste caso não se trata de aceitar o grotesco, como acontece em Freaks. É uma forma pensá-lo, problematizá-lo, já que não se trata de uma desabilidade individual, como no filme, mas sim de uma desabilidade comunitária – de uma comunidade que se tornou insuportável.
c.moreira

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