segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Catarse cinematográfica: Didi-Huberman e Godard (Imagens apesar de tudo)

Na mesma época em que assisti ao filme Bastardos Inglórios (comentado neste blog), estava lendo o livro Imágenes pese a todo, do teórico francês Georges Didi-Huberman. Agora, com certo distanciamento, percebo aproximações incríveis entre as duas obras.
É em torno de quatro imagens que gira o livro de Didi-Huberman. Quatro fotografias tiradas clandestinamente em agosto de 1944 por membros do Sonderkommando de Auschwitz-Birkenau.

As imagens revelam os métodos de extermínio utilizados pelos alemães na Segunda Guerra. Algumas nem tanto. É o caso da 4ª fotografia, que nada mais é do que um registro fortuito de céu e árvores (provavelmente a foto foi tirada enquanto o fotógrafo fugia para não ser capturado pelo impropério de fotografar, o que confere à imagem um outro nível de sentido). O teórico francês analisa as fotografias perguntando pelas condições em que determinadas fontes visuais podem ser utilizadas como um documento histórico, questionando o conceito de “inimaginável”, defendido por Claude Lanzmann, diretor do documentário Shoah. Lanzmann insistia na idéia de que o Holocausto é inimaginável, e por isso irrepresentável. Para ele, qualquer tentativa de representação visual desse horror seria sintoma de um fetichismo revisionista. Contra esse argumento, apesar de tudo, Didi-Huberman defende que as imagens podem revelar o real, pelo menos de alguma forma.
O livro é composto por duas partes. A primeira desenvolve uma leitura das quatro fotografias supostamente tiradas por um judeu grego chamado Alex, que era membro do Sonderkommando. Foi escrita entre janeiro e junho de 2000 para ser publicada no catálogo da exposição Mémoire des Camps, dedicada a fotografias de campos de concentração e de extermínio nazistas. A segunda parte, inédita até a publicação do livro, foi escrita em 2003, para rebater as críticas que o autor recebeu depois da exposição. Apesar de se deter demoradamente na segunda parte, tentando rebater com veemência as duras críticas recebidas, a segunda parte tem o seu valor. É nela que o autor se debruça sobre História do Cinema, de Godard, e sobre o conceito de “redenção da imagem”, de Walter Benjamin, para mostrar que, contrariamente ao que afirmava Lanzmann, “um simples retângulo de trinta e cinco milímetros salva o horror do real” (a frase é de Godard): “A imagem, não mais que a história, não ressuscita nada em absoluto. Porém, redime, salva um saber, re-cita apesar de tudo, apesar do pouco que pode, a memória dos tempos”.
Recorrendo a Hannah Arent, Didi-Huberman defende que se Auschwitz ultrapassa toda noção de justiça e humanidade, é preciso repensar o direito e as ciências humanas, pois ali onde “fracassa o pensamento” e surge a tentação do impensável “é onde devemos preservar o pensamento”. “Para saber é preciso imaginar”. Ou ainda, saber que devemos aprender a “dominar o dispositivo das imagens para saber o que fazer com nosso saber e com nossa memória”.
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Mas o que tudo isso tem a ver com Bastardos Inglórios, do Tarantino?
Óscar Brox, numa interessante resenha sobre o filme de Tarantino, lembra que a institucionalização e repetição de determinados códigos cinematográficos para representar a Segunda Guerra Mundial transformou todas essas ficções em uma rua de mão única. Suas imagens perderam a perspectiva do tempo. Brox afirma que, em Bastardos Inglórios, Quentin Tarantino remonta a História à maneira de Godard. Vale lembrar que em História do Cinema, Godard utiliza a montagem como princípio constitutivo da obra. O cineasta toma imagens das mais diversas e as sobrepõe, re-significando-as, fazendo vibrar o sentido das imagens do passado com “a possibilidade de um novo significado”. Exatamente o que faz Tarantino, ao “destruir o caráter orgânico e totalizador de sua ficção”, para construir outra com tantas ramificações a nossa imaginação exigir. Assim, seguindo ainda os argumentos de Brox, “o filme exorciza a dor das vítimas através de sua vingança, devolvendo-as o golpe com as mesmas armas com que o Terceiro Reich estendeu sua hegemonia: a linguagem, as imagens”. Em outras palavras, Tarantino potencializa uma catarse cinematográfica ao reescrever não só a história, mas também a história do próprio cinema, o que faz Godard, apesar da distância que os separa. O cineasta reabilita as imagens desgastadas pelo fascismo e “a representação temerosa de romper com o seu signo trágico. E, para isso, cabe remontar o material prévio, reescrever o mundo cinematográfico e tratá-lo como uma contingência sobre a que podemos construir um novo mundo. (...) Por isso reabilitar as imagens liquidando-as com a força dessas mesmas imagens implica necessariamente em reinventar a história, ou seja, matar Hitler”.
Didi-Huberman escreveu Imágenes pese a todo alguns anos antes do surgimento de Bastardos Inglórios, mas a frase bem poderia servir à obra de Tarantino: “Ao desconstruir os relatos, as crônicas historicistas, esta (a imagem) se volta capaz de um realismo crítico, ou seja, de julgar a história, de eliminar o tempo oculto dos vestígios”. O teórico francês se refere aí ao cinema, especificamente, onde a imagem pode alcançar o tempo. Um processo que Godard desenvolve através da montagem e que pode ser percebido também nas quatro fotografias analisadas por Didi-Huberman. Imagens que, de uma maneira ou outra, constroem uma determinada narrativa que remonta a própria história.


c.moreira


Referência da resenha de Óscar Brox, sobre Bastardos Inglórios

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