quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

A ESTÓRIA MATOU A HISTÓRIA

.
Na última cena de Bastardos Inglórios, Aldo Rayne, protagonizado por Brad Pitt, olha para o seu parceiro, depois de marcar com uma suástica a testa do coronel Hans Landa e diz: “Acho que essa pode ser muito bem a minha obra prima”. A frase bem poderia ter sido pronunciada por Tarantino.
Muitas coisas rolando na cabeça depois de assistir ao filme. A maioria dos expectadores vai ao cinema para ver Tarantino e não Bastardos Inglórios. É quando o autor fica mais importante que a sua obra. Nesse caso, não foi diferente. Quase todas as críticas que li sobre sua película mais recente apela para as obras anteriores como parâmetro de análise, o que pode ser um problema. De um lado, espera-se uma superação do que foi produzido antes, o que cada vez fica mais difícil de acontecer – todo mundo sempre quer um filme melhor. O crítico, assim, acaba forjando uma olhar “modelado” - repetir é entendido como sintoma de esgotamento. De outro, ao contrário, espera-se sempre o mesmo Tarantino. Se a obra não estiver à altura das anteriores, então deve ser jogada no lixo. Penso ao contrário, que essas questões devem ser pensadas de modo dialético. REPETIR e DIFERIR pode ser a grande estratégia de um cineasta.
Quase todos são unânimes em afirmar que a filmografia de Tarantino é marcada por um estilo que une elementos da cultura pop, boa trilha sonora, roteiro exemplar, diálogos bem construídos, muito sangue. E principalmente as constantes referências ao próprio cinema, a cineastas de sua predileção, a filmes dos mais variados gêneros, a cenas memoráveis (por mais toscas-KIT que sejam), e a atores que povoam seu imaginário. Pois bem, repetir esse repertório cinematográfico é claro, só pode ser uma bela forma de homenagem. A cada vez que alguma referência aparece no cinema de Tarantino, desde os faroestes de Sergio Leone, em Kill Bill, ou John Wayne e Aldo Ray, materializados na personagem de Aldo Rayne, ou mesmo ao universo da nouvelle vague, em Bastardos Inglórios, sem falar no interesse pelo mundo Pulp, em Pulp Fiction, pois bem, a cada vez que uma referência desse tipo aparece – às vezes apenas como um traço, uma dicção - o cineasta o re-significa, atualizando seus gestos. Repito, um procedimento que se constitui como repetição e diferença. E quando esse mesmo procedimento se torna comum no trabalho do diretor, novamente é a diferença e a repetição que marcam sua presença, agora transformadas numa auto-referência. É Tarantino falando do próprio Tarantino. Acredito que esse é o momento mais impressionante que todo artista está fadado a alcançar. Como diria Manoel de Barros, “repetir, repetir - até ficar diferente”. REPETIR É UM DOM DO ESTILO. Portanto, não me venham com esse papo de que Tarantino se tornou repetitivo, que isso é o que todo bom leitor espera de um bom escritor. Por que as pessoas vão ao cinema assistir ao Bastardos Inglórios? Para ver Tarantino, ora! Por outro lado, isso pode gerar uma expectativa que nem sempre se converte em satisfação. Justamente porque desencadeia aquele olhar “modelado”, que falei anteriormente. O expectador só consegue assistir se tiver disposto a comparar a todo momento as obras de um mesmo diretor. Uma crítica escrava da tradição. Bom seria ver Tarantino como se fosse sempre pela primeira vez.
.


Então, vou falar apenas de Bastardos Inglórios. Aí vai uma sinopse. Shosanna Dreyfus vê a família ser assassinada no interior da França pelos capangas do coronel nazista Hans Landa, em um esconderijo. A jovem sobrevive e consegue se estabelecer em Paris. Muda de nome e se torna proprietária de um cinema. Concomitantemente, o tenente Aldo Raiyne chefia os bastardos inglórios, um grupo de soldados judeus americanos que pretendem se vingar dos nazistas. Diga-se de passagem, um grupo extremamente violento - não seria diferente vindo de Tarantino. Rayne e seus parceiros contam com a colaboração de Bridget Von Hammersmark em uma missão idealizada para destruir o cinema de Shosanna com os nazistas dentro. A jovem sobrevivente, sem saber da existência de Rayne, imagina um plano semelhante. O que acontece a partir disso, melhor não contar.
Uma das melhores coisas do filme: Mélaine Laurent, que faz Shosanna. Conheço muito pouco essa atriz. Ué, precisaria? Mélaine Laurent está linda no filme, principalmente no capítulo 3, meio nouvelle vague. Gostei especificamente de cenas como aquela em que ela entra no cinema decidida a queimar nazistas – a mulher frágil que conversara com o coronel Hans Landa no restaurante algumas cenas depois de escapar por pouco de suas mãos, transformara-se em uma mulher fatal (fatal como aparece ao som de David Bowie aguardando a cena do incêncio, fatal como aparece na tela do cinema antes do gran finale: “Eu tenho uma mensagem para a Alemanha, que vocês todos vão morrer, e quero que olhem fundo no rosto do judeu que vai fazer isso”). .


É graças ao cinema de Shosanna que a estória vai matar a história. Guimarães Rosa dizia, no prefácio “Aletria e Hermenêutica”, de Tutaméia, que a história quer ser estória. É justamente o que acontece no filme de Tarantino. Passei o filme esperando para ver se o incêndio se concretizaria. Mas Hitler não morreu em um cinema, pensei eu. Logo, o filme deveria ter um outro desfecho. Provavelmente, Hitler escaparia pelos tubos de ventilação, ou desapareceria tal como gênio da lâmpada. É que estamos acostumados a assistir meta-ficções historiográficas como essa tendo como pano de fundo nossos conhecimentos anteriores. E olha só a maravilha que é o cinema: Nossos conhecimentos anteriores quase não nos servem para nada diante de um bom filme. Basta dizer que, em Bastardos Inglórios, a estória matou a história. Tarantino subverteu nosso mundo, tal como conhecemos - o que nos leva a perguntar: "E se fosse verdade, como teria sido?" Assim, contar uma estória pode ser uma forma de imaginar outras possibilidades de história. Uma história menos fascista, mesmo que seja "tarantinesca". Matou Hitler antes e depois do tempo com uma grande chuva de balas. Só o cinema conseguiu.

c.moreira

3 comentários:

Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.
Anônimo disse...
Este comentário foi removido por um administrador do blog.