segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

A morte é uma linda mulher


A morte era Uma Linda Mulher, mas não era Julia Roberts. Usava vestido justo. Tão justo que quase estourava as costuras. E ela usava sapatos tão altos que “pareciam perninhas de pau”. Para Nick Belane, ela era um glorioso pedaço de carne. Talvez não fosse tão bonita assim. Talvez nem fosse bonita. É que ele quase sempre estava bêbado, de uísque ou vodka. A mulher chama-se Dona morte. E Belane é o detetive de Pulp, última novela de Bukowski, publicada em 1994 – ano de sua morte. No livro, Bukowski - que nasceu na Alemanha, mas que viveu a maior parte de sua vida em Los Angeles - trata da morte com o humor “corrosivo” que sempre caracterizou suas narrativas. Pulp não é apenas um livro de despedida. Bukowski o dedica à subliteratura. Isso não é nada fortuito. O gênero pulp sempre foi considerado como literatura menor, não só pela temática, interessada nos breus do submundo, nos ferfis dos vagabundos, nos perfumes baratos das prostitutas, como pela narrativa escrita ao sabor da hora, fluente e ágil feito uma ejaculação precoce. O ritmo é cinematográfico. E a violência, como na maioria do gênero, gratuita:

- Hora de se mandar, companheiro.
- Hora de se mandar, hein? Eu só vou quando me der na telha, porra!
Os drinques o tinham deixado ousado. Isso acontece.
Meti o punho na barriga dele. Estava com a soqueira. Quase atravesso a cara, porra.
Ele caiu.
Eu peguei alguns cacos de vidro do chão. Voltei, abri a boca dele e joguei os cacos lá dentro. Depois, esfreguei-lhe as bochechas e dei-lhe uns tapas. Os lábios ficaram mais vermelhos.


Mais pulp impossível. O livro bem poderia ter sido filmado por Tarantino: A personagem espanca, a vítima cai, o agressor vai embora, o agressor volta, a vítima engole cacos de vidro, seus lábios ficam mais vermelhos. Mais isso não é tudo. O que mais me chama a atenção no gênero é essa capacidade louca e deliciosa de abrir mão da própria literatura. Ou melhor, de uma determinada literatura. E Bukowski, feito São João Batista que entrega a cabeça aos caprichos de Salomé, ainda faz caretas. Goza da própria arte. Assim, ao arremessar sua cabeça pela janela ao precipício rende também uma homenagem aos escritores que o influenciaram. Um dos homenageados é John Fante, que se transforma em personagem de Pulp. Numa das tardes em que estava no escritório, Belane recebe a visita de dois estranhos. Um deles é Fante. A todo momento personagens estranhas entram e saem de seu escritório. Todo bom detetive deve ter um escritório. Mas o melhor do livro ainda são as frases. Algumas bem sacanas, que nada mais são do que “notas de um velho safado”, e que fazem lembrar as “frases filosóficas” de Dalton Trevisan, como essa: “A velocidade da língua de um leproso no peitinho de uma virgem”, ou naquela em que ironiza o sujeito que casou e virou escravo de uma extraterrestre: “- Grovers, você apenas levou uma surra de boceta. Tem muito homem assim”.

Belane não poupa as frases ácidas. Numa das passagens, dentro da livraria onde procura Celine, a mando de Dona Morte, lança a Red, o dono, frases antológicas, como: “É melhor mandar aspirar essa banha. Vai ter um ataque cardíaco. Eles sugam a gordura por um tubo. Você pode botar num pote e olhar, pra lembrar de jogar fora o recheio dos sonhos”. Mas ao longo dessas provocações virtuosas, vai se desenhando um livro sobre a própria literatura. Ainda na livraria, Belane encontra um visitante misterioso que se volta para ele e diz: “Nos velhos tempos a vida dos escritores era mais interessante do que os livros deles. Hoje, nem a vida nem a literatura são interessantes”. O universo pulp pode ser uma resposta a esse desencanto, que não é só com a vida ou com a literatura. É com tudo aquilo que o rodeia, inclusive e principalmente a sociedade do espetáculo: “(...) eu estava deprimido e me sentei numa cadeira com a garrafa ao lado. Não liguei a televisão , descobri que quando a gente está mal essa filha-da-puta só faz a gente se sentir pior. Uma cara chata após a outra, parece não ter fim. Uma procissão interminável de idiotas, alguns famosos. Os cômicos não tinham graça, e os dramas eram de quarta classe. Não havia muita alternativa para mim, exceto o escocês”. É assim também com os serviços de tele-sexo. Belane até tenta estabelecer um vínculo comunicativo com a atendente, mas fracassa. Dá as costas para o mundo. Com isso não quero sugerir que o livro é melancólico. Essa seria a última coisa que esperaria de Bukowski. Os gestos do narrador são de amor ao destino, são gestos de uma atitude afirmativa em relação à vida – e se ela é saudável ou não, isso é uma outra história. Não se importa com os outros e muito pouco consigo próprio. Está à mercê dos acontecimentos e raramente rema contra a maré. O detetive aproveita o momento, quase não teme a morte, busca aquilo que lhe dá prazer, mais a bebida do que as mulheres. Aprecia, é claro, o sexo oposto, mas protela indefinidamente a consumação do prazer. Seu orgasmo é de palavras.

c.moreira

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