terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Sob o signo da queda


O narrador anônimo de Hotel Atlântico, de João Gilberto Noll, inicia suas errâncias em um pequeno hotel do Rio de Janeiro. Lá, ele se depara com o primeiro cadáver da narrativa: “De repente apareceram no topo da escada muitas pessoas, sobretudo homens com pinta de policiais, alguns PMs, e começaram a descer trazendo um banheirão de carregar cadáver”. Ao longo do livro, outras mortes se sucedem como a da americana que o narrador conhece em uma viagem de ônibus para Florianópolis e a de Diva, uma mulher cuja extrema-unção fora dada pelo protagonista travestido de padre. Mas a morte parece não ser o elemento principal deste livro publicado inicialmente em 1987, e que relata a viagem de um homem solitário pelo sul do país.
Considerado o livro mais cinematográfico do escritor gaúcho, Hotel Atlântico foi adaptado recentemente para o cinema por Suzana Amaral, a mesma que filmou A Hora da Estrela, de Clarice Lispector. Como ainda não assisti ao filme, vou me ater a algumas impressões que o livro suscitou.
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Li alguns comentários sobre a obra. A maioria concorda em alguns pontos, como a viagem como eixo em torno do qual gira toda a narrativa. Comecei o texto lembrando que o narrador inicia suas errâncias em um hotel. Vale lembrar que a palavra errância significa também vagar, andar sem destino. Há um paradoxo que é inerente à figura do personagem. A ausência de destino é o seu destino. Fadado a vagar sem ter porquê, até descobrir que o sentido é o próprio vagar. Viajar pode ser também uma errância. Assim poderia ser lida a obra de Noll, muito mais preocupada com o caminhar da narrativa, o fluir das palavras, da sintaxe, com o passeio da linguagem, do que com a história propriamente dita. O primeiro livro dele que li foi Berkeley em Belágio e a primeira coisa que me impressionou naquele texto foi justamente o prazer de ler para percorrer as linhas, e talvez escutar uma música. No caso de Hotel Atlântico, penso que a narrativa é mais cinematográfica que musical, talvez por isso o interesse da adaptação. Uma adaptação mais possível do que Berkeley em Belágio. Aqui, as cenas pedem uma visualização. Vemos muito mais do que ouvimos. Uma narrativa óptica e não sonora, nos termos que Gilles Deleuze discute a distinção entre o realismo e o neo-realismo italiano. Ver não significa aqui pura realidade, nos moldes tradicionais em que ela é pensada. Trata-se de um realismo que pode se referir tanto a uma pretensa realidade como a um possível sonho, ou melhor, pesadelo. Um pesadelo porque o narrador nos é interdito. Sabemos tanto dele quanto do protagonista de Estorvo, de Chico Buarque, que também teima em “errare”. E quase sempre tememos aquilo que não podemos conhecer. Mas há outros detalhes que nos apavoram mais nessa narrativa de Noll. É o caso da recorrência de determinadas imagens, tecidos. A todo momento aparece uma toalha dobrada, uma cortina, um papel, um lençol. Deleuze, em A dobra, Leibniz e o barroco, insistia na idéia de que o barroco é a dobra que vai ao infinito. Dentro do banheirão de carregar cadáver havia um corpo “coberto por um lençol”. A americana, antes de morrer se cobre com um cobertor que estava dobrado no encosto da poltrona dianteira do ônibus. O narrador, em um determinado momento, retira o cobertor e descobre um cadáver. Um lanterninha fecha uma cortina vermelha na porta da sala de projeção de um cinema em Florianópolis. No hotel, o homem retira a toalha em que estava enrolado. No prostíbulo que visita a caminho do Rio Grande do Sul, jaz uma cortina branca rendada. Lá, uma prostituta japonesa, tal qual aquela do conto de Valêncio Xavier, lhe oferece um pijama dobrado, que cheirava bem.

Em Viçoso, o narrador é acolhido em uma paróquia. A mulher que fazia os serviços da casa estendia um lençol branco no varal. Ele recebe uma toalha branca para se lavar, depois de ouvir as palavras de Antonio: “Aqui há sempre uma toalha de banho limpa para quem chega”. Mas assim como chega, o narrador sempre se vai. Na mesma paróquia ele vê uma cama coberta por um lençol branco que caía pelas beiras. E a todo momento alguma coisa está a cair no livro de Noll: “Dei alguns passos tão inebriado de sono, que quase à beira da cama as minhas pernas fraquejaram e eu caí de joelhos no chão”. Em outro momento: “(...) um desequilíbrio e caí sobre um canteiro de crisântemos”. No ônibus: “notei uma bolsa caída aos pés de Susan” ou “A cabeça de Susan caiu para a frente. Eu a endireitei contra o encosto. Me perguntei de novo se nós dois continuaríamos juntos em Florianópolis”. Não fossem os acidentes, os incidentes, que caem sobre algo, apontando para aquilo que não pode ser mudado, talvez ficassem mesmo juntos. Alguém até poderia chamar essa viagem de destino.

Há algum tempo, sobre uma entrevista com o escritor Manoel Ricardo de Lima, escrevi para o jornal urtiga! um comentário sobre o seu livro de poemas Quando todos os acidentes acontecem que poderia nos ajudar a pensar um livro como Hotel Atlântico: “O dicionário nos diz que um acidente é um acontecimento casual, fortuito, imprevisto; um acontecimento infeliz, e de que resulta ferimento, dano, estrago, prejuízo, ruína, desastre; o que se acresce ao principal, o acessório. Um acidente seria o pormenor, o detalhe, a particularidade, o que resulta de contingência, do acaso, dependente das circunstâncias e não da natureza de um ser. Roland Barthes, por exemplo, se dedicou à escrita de incidentes, aquilo que, tal como um acidente, cai sobre alguma coisa. Nesse caso, a coleta de coisas vistas ou ouvidas no Marrocos, em 1968 e 1969. Alguns anos depois, chegou a dizer que a futilidade do incidente, privada de todo comentário, se põe a nu, e assumir a futilidade é quase heróico”.
Assim como os incidentes se traduzem aqui como sintoma de um cair, manchas aparecem como índice de que algo “realmente” caiu e manchou a própria natureza do homem. Em um bar na cidade de Viçoso, sobre a mesa havia uma toalha de pano, manchada de ovo numa beirada. Em Arraiol, no hospital, depois de ter a perna amputada, recebe um pijama cinza que estava com algumas manchas quase imperceptíveis. Ao entrar no Hotel do Rio de Janeiro, notou uma mancha de sangue quase invisível no carpete. Ou na fazenda em que foi levado de carona antes de fugir para Viçoso: “Eu não tinha andado dez minutos quando vi sangue na areia”.
Assim, é sob o signo da queda, do acidente, da mancha, do rastro, da marca, que João Gilberto Noll vai dobrando e desdobrando Hotel Atlântico. Resta saber se essas pequenas sutilezas, que para mim fazem a diferença da narrativa, aparecem, ou melhor, também caem no cinema.

c.moreira

Um comentário:

Anônimo disse...

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