quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Cinematógrafo de Letras e outros aparelhos


Em Cinematógrafo de Letras, Flora Süssekind, relembra uma das passagens do livro Vida Ociosa, de Godofredo Rangel, que foi publicado originalmente em capítulos no Estadinho (edição vespertina de o Estado de S. Paulo) e na Revista do Brasil, em 1917:
“Era uma velha máquina, preciosa, que, de empréstimo em empréstimo, se desgovernara desoladoramente. Mas o último empréstimo dera-lhe virtudes raras, muito de meu agrado. Mesmo sem disco tocava músicas de Wagner, ricas de estrépito. Desloquei a mola e ele começou. Primeiro foi um roncar surdo de tempestade que cresce; súbito desencadearam-se trovões rolantes de mistura com guinchos inexprimíveis. Em seguida amainou e pôs-se a piar e a ringir com um acento tão animal que bulia nas fibras do coração”.
A cena apresenta uma das inovações técnicas do final do século XIX e início do século XX. Para Süssekind, a descrição parece desmontar o funcionamento habitual da máquina: “O que se elogia no gramofone não é sua capacidade de reprodução mecânica de sons previamente gravados; é, ao contrário, em meio ao seu desgoverno, uma certa proximidade da natureza, dos ruídos de trovões e tempestade e dos acentos animais”. Assim, o que impressiona, na máquina, não é o seu desempenho técnico, mas é exatamente aquilo que foge do mundo da técnica. Em outras palavras, a representação fornece a ele “nova aura pela própria desfuncionalidade”. O fragmento talvez sirva para ilustrar uma leitura desse estudo de Flora Süssekind, publicado inicialmente em 1987 e reeditado há alguns anos. Venho me interessando muito por esses estudos que tentam mapear e investigar a literatura, a técnica e a modernização no Brasil do final do século XIX e início do século XX. O livro de Flora não trata apenas da literatura dessas décadas de modernização diante do horizonte técnico que se constituía na época. Sugere também uma história da literatura brasileira que leve em conta suas “relações com uma história dos meios e formas de comunicação, cujas inovações e transformações afetam tanto a consciência de autores e leitores quanto as formas e representações literárias propriamente ditas”. Assim, o estudo não está interessado apenas em investigar a agonia da imagem próxima do artesanal frente às influências da fotografia, kinetoscópio, cinematógrafo, cinema, entre outros – como se essas inovações apenas sugerissem novos temas e modos de observar a realidade – mas também discutir a maneira de como a literatura assimilou em termos de linguagem essas inovações. Não se trata apenas de influências, até porque esse processo se deu muito mais a nível de uma tensão potencial constante entre a literatura e a técnica que aparecia: “Aqui, pelo exame da crônica, da poesia e da prosa de ficção dessas mais de três décadas, o que se delineia é um confronto – primeiro hesitante, meio de longe, mais tarde convertido em flirt, atrito ou apropriação – com uma paisagem tecno-industrial em formação”. Em outras palavras, o que Sussekind procurou fazer foi examinar de que maneira a aproximação da literatura com o horizonte técnico passa a “enformar” (a expressão é dela) a produção cultural: “Não se trata mais de investigar apenas como a literatura representa a técnica, mas como, apropriando-se de procedimentos característicos à fotografia, ao cinema, ao cartaz, transforma-se a própria técnica literária”.

Se de um lado João do Rio tratou com encantamento a técnica moderna, intitulando sua coletânea de crônicas publicadas em 1909 de Cinematógrafo – de onde inclusive Flora extraiu o título de seu estudo – de outro, as relações foram mais conturbadas. Em Cinematógrafo, Paulo Barreto (João do Rio) pratica uma espécie de mimesis, tentando pensar a crônica como filme de cinema: “Desejo técnico, ligação via analogia mais do que propriamente via linguagem literária, é como se o cronista assistisse, com certo deslumbramento, à constituição de um novo horizonte técnico e tentasse imaginar relações possíveis com ele”. Nesse sentido, João do Rio não chegou a desenvolver “ligações mais perigosas” com o cinema.
Como não pensar aqui nas “Kodaks”, de Pedro Kilkerry, publicadas na Bahia pelo Jornal Moderno, em 1913, que prenunciaram a “provocação” modernista de Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, e Pathé Baby, de Antonio de Alcantara Machado, obras que não só tematizavam a questão da técnica, mas que também pretendiam “enformar” esse universo dentro dos procedimentos narrativos de corte e montagem: “Aí se encontra uma literatura-de-corte, em sintonia com uma concepção também diversa do cinema, e pouco preocupada em parecer com as fitas, em falar de biógrafos e cinematógrafos. Uma literatura na qual, já incorporados os sustos, dialoga-se maliciosamente com as novas técnicas e formas de percepção. E que não cita a todo momento o cinema. Mas se apropria e redefine, via escrita, o que lhe interessa”. Dessa maneira, Flora Süssekind encontra confrontos menos miméticos entre forma literária e artefatos técnicos modernos, apontando para três procedimentos básicos: imitação, estilização e deslocamento.
Por imitação entende tanto o aproveitamento de gênero e dicção, quanto a mimesis inconsciente da linguagem jornalística. Já a estilização incluiria tanto a reelaboração de recursos próprios do jornalismo quanto a conversão da “experiência de choque” diante da nossa incipiente modernização. Parece ser contra essa experiência de choque que boa parte da obra simbolista e parnasiana se insurge. Quanto ao deslocamento, basta lembrar de Raul Pompéia em O Ateneu, que, se não me falha a memória, Mário de Andrade considerou a última grande obra barroca brasileira (texto publicado em Aspectos da Literatura Brasileira), em que predomina o deslocamento temporal e a memória como eixo que se volta contra a influência decisiva do jornalismo que “parece sugerir um progressivo apagamento da figura do narrador”, construindo assim um caminho alternativo, na direção de uma “afirmação da subjetividade sob o signo da lembrança ou de uma narrativa em digresões”. Caso semelhante é o de Mocidade Morta (1899), de Gonzaga Duque, romance próximo do ensaio, e dos contos de Simões Lopes Neto, regidos pelo tempo da lenda. Esse predomínio da memória, de certa forma, é o que vemos acontecer hoje na literatura brasileira. Basta lembrar de romances como Dois Irmãos, de Milton Hatoum, Leite Derramado, de Chico Buarque, e O Falso Mentiroso e Heranças, de Silviano Santiago. A primeira mulher, de Miguel Sanches Neto. Com a diferença de que nessas memórias o narrador não é mais senhor do que narra. Para finalizar gostaria de lembrar de uma fotomontagem comentada no livro: "Os trinta Valérios", produzida pelo paulista Valério Vieira, realizada entre 1890 e 1900, pela qual recebeu medalha de prata na Louisiana Purchase Exposition, em 1904. No trabalho, o artista apresenta uma cena aparentemente banal do final do século. Uma espécie de sarau musical, em que um grupo se apresenta para uma pequena platéia. O curioso é que todos os personagens têm o rosto de Valério, inclusive os quadros da parede e um busto no canto esquerdo da imagem: "(...) assim como na pintura se esboçavam caminhos diversos da alegoria ou dos quadros históricos, também à própria fotografia foi possível, ao menos no caso dessa fotomontagem, discutir a aura de objetividade e a função exclusiva de documentar que lhe foram atribuídas (...). Discutindo-se, assim, a fé cega que a imagem técnica costumava provocar". Em meio ao furor causado pelas imagens técnicas, veiculadas pelas revistas, publicidade, etc, a fotomontagem de Valério parece desmontar, ou pelo menos "profanar" a idéia de que essas imagens eram garantia de objetividade.

c.moreira

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