sexta-feira, 22 de maio de 2020

Condições ideais para o amor, a obra viva de um poeta morto: Dedicado à memória de Luiz Eurico Tejera Lisbôa



(Foto: Acervo família)

Quando descobri a poesia de Luiz Eurico Tejera Lisboa, fiquei impressionado com a força, visceralidade e urgência de uma revolução social inscritas em seus versos. O poeta chamou a minha atenção não apenas pelo teor político de suas palavras, mas também pelos gestos de uma corajosa e precoce luta cuja história é ainda pouco (re)conhecida.  
Nascido em Porto União mas criado no Rio Grande do Sul - primeiro em Caxias do Sul e depois em Porto Alegre -, o Luiz Eurico foi um dos jovens militantes mortos pela Ditadura Militar.
Ico, assim chamado pelos mais próximos, ingressou no Movimento Estudantil nos anos 60, sendo preso pela primeira vez em 68 por fomentar um abaixo-assinado a favor da reabertura do Grêmio Estudantil da escola que frequentava. Um pouco depois passou a integrar o quadro militante da ALN (Ação Libertadora Nacional). Em 1969, casou com Suzana Keniger Lisbôa, sua companheira de ideais e luta. Com ela, o jovem entrou na clandestinidade. Em 1972, foi encontrado morto no quarto de uma pensão em São Paulo. O episódio, repleto de mal-entendidos, culminou com o desaparecimento de seu corpo. A família só descobriria o destino de seus restos mortais em 1979. Aliás, Luiz Eurico foi a primeira vítima da ditadura a ter seu corpo localizado. Estava em uma vala clandestina do cemitério de Perus (SP). Em 2013, a Comissão da Verdade refutou a versão de que o jovem havia cometido suicídio. Uma série de estudos no laudo apontaram para um assassinato, consignando-se, assim, uma nova versão. Como na história de Vladimir Herzog, a construção de uma verdade mentirosa foi a forma que a repressão encontrou de proteger os verdadeiros assassinos e suas mãos manchadas de sangue.

(Foto: Acervo família)

Impossível resumir a vida de Luiz Eurico em tão poucas linhas. Seria preciso muito mais do que um punhado delas para acertar as contas com a sua história, que é parte de um passado ainda recalcado e que paira como fantasma na nossa política contemporânea.
Em um tempo no qual o país volta a flertar intensamente com excepcionalidades políticas, evocar a memória de Ico por meio de seus versos é uma forma não só de revisitar o passado, convocando o presente a não repeti-lo, mas também de chamar a atenção contra toda e qualquer violência de Estado, vista por muitos como uma condição para normalidade. Não, um estado de exceção não é um paraíso. Está mais para o inferno. Nesse inferno social, reinam a contradição, a falta de sentido e de dignidade. Difícil ali julgar os homens como mocinhos ou bandidos, mas certamente uma violência normatizada e normalizada por um Estado é sempre o signo soberano de uma barbárie. Vivemos em um tempo doente no qual alguns dos que nos representam na política defendem torturadores, elogiando a ditadura, a censura, a morte, entre tantas outras monstruosidades, tudo com uma naturalidade que aos olhos dos mais atentos soa como um absurdo atroz. Conhecer a vida e a obra de jovens como Luiz Eurico é hoje mais do que importante. É fundamental. Infelizmente, jovens – geralmente pobres e negros - continuam morrendo nas mãos no Estado todos os dias, por meio de seus aparelhos repressores e de sua omissão. Índios têm sido assassinados com a conivência de um sistema desigual e omisso em relação a uma promoção mais justa dos direitos humanos. Quem matou Marielle? O que fazer com seus corpos? O que fazer com suas memórias? O que fazer com o sangue que mancha a todos no nosso calejado dia a dia. 


(Fotos: Acervo família)

Certamente, o contexto da escrita da obra de Lisbôa contribui para a sua importância. Como o poeta Paulo Martins - protagonista de “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, e vivido no cinema pelo ator Jardel Filho -, o Luiz Eurico mesclou poesia e revolução de forma intensa: “Eu / Sou poeta da Revolução / A minha pena é minha espada / E o meu canto / se eu canto / é um canto de guerra”. Eis sua poética/política.  
Em outro texto, o poeta defende a palavra como uma arma, aproximando-se, assim, de uma farta linhagem dos poetas sociais. A diferença é que Luiz Eurico morreu por sustentar essa palavra: “A palavra deve ser uma arma / sem requintes inúteis / de funções evidentes / claramente parcial / e partidária / para ser contundente / e ser na História”. 

Foto que integrou a exposição Ausenc’as (lê-se “ausências”), produzida pelo fotógrafo argentino Gustavo Germano, no O Memorial da Resistência de São Paulo, em 2015.


O comovente poema “Balada de Ham-Li”, por sua vez, descreve a morte de um menino na Guerra do Vietnã, observando que o coração daquela criança “pulsa / inalterado / sobre todo o Vietnã”. Quantos corações de meninos mortos pulsam inalterados sobre o nosso país, de uma periferia a outra?
Poucos sabem, mas Luiz Eurico foi o irmão mais velho do grande compositor e intérprete gaúcho Nei Lisboa. Sobre ele, o músico escreveu a bela lembrança: “Estivemos juntos pela última vez, Ico, Suzana e Eu, em clandestina semana do inverno de 72 na praia do Pinhal. Condições ideais, aos meus púberes treze anos, para uma pós-graduação na arte de fazer pandorgas. Nela colávamos, em papel de seda, a lança de mira, símbolo da ALN. Algumas vezes atingiam o infinito azul do céu, noutras se despedaçavam entre os fios de luz atravessados no caminho. Não se pode acertar sempre. Mas ele, certamente, não morreu de medo”. Poucos sabem também que Luiz Eurico foi amigo de João Gilberto Noll, um dos maiores escritores da literatura brasileira contemporânea, falecido recentemente. Os dois foram amigos de escola e sobre Ico o prosador escreveu um belo texto intitulado “O Denso Silêncio de Lisbôa”, publicado na antologia “Condições Ideais para o Amor”, que reúne a poesia de Luiz Eurico, publicada pela Editora Tchê em parceria com o Instituto Estadual do Livro, do Rio Grande do Sul, em 1993, numa edição organizada por Antonio Hohlfeldt, que traz também algumas correspondências do poeta-guerrilheiro trocadas com Suzana. O livro é um relato do amor de Ico pela companheira, pela luta, pela vida e por um Brasil mais justo e fraterno. Um Brasil que seu sangue regou mas ainda não viu nascer.


(Foto: Acervo família)


O poeta tinha 24 anos quando foi assassinado. Fruto de uma juventude que via Che Guevara e Cuba como símbolos de sua utopia, Luiz Eurico foi um dos jovens que acreditava que essa luta deveria ser vivida intensamente. Se algumas décadas depois a História provou que nenhum lado da moeda é perfeito e completamente justo (ditaduras de esquerda ou de direita são sempre ditaduras, e não era a favor de uma ditadura que lutou Luiz Eurico), isso não diminui a truculência com a qual esses jovens sonhadores foram mortos em um estado de exceção que volta cada dia mais a nos assombrar. O poeta morto permanece um pouco vivo em seus versos, bem como o sistema repressor que o aniquilou. Sua poesia e memória nos convocam a ficarmos sempre alertas. Como escreveu a viúva de Luiz Eurico em um texto que integra o livro: “A verdadeira democracia jamais será construída sobre os cadáveres insepultos dos companheiros assassinados e sob as mãos impunes de seus assassinos”. Quando fizermos um verdadeiro e justo acerto de contas com a nossa própria história talvez venhamos a assistir com menos frequência à defesa do horror promovida contraditoriamente em nome da paz e da normalidade.      

Manuscritos do poeta:




   

Poema escrito em 24 de novembro de 68
Dedicado ao filho que o poeta não teve


Ao Suzico
 
Meu filho
Escrevo agora estes versos para que
saibas algum dia
que estas mãos que empunham a metralha
e semeiam a morte
este olhar resoluto de soldado
têm algo mais que o impulso
               mercenário
e o querer individual.

Para que saibas que estas mãos
               escreveram versos
estes olhos vislumbraram a beleza
               de um outro dia
e este peito coberto de cicatrizes
já abrigou a paixão e o amor.

Para que saibas
que desde o primeiro passo
fui presa até a última fibra
                 da poesia
E que a metralha e a luta
são em tempo certo
o meu maior poema
a grande mensagem de
                   um artista


Publicado no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 23 de maio de 2020.

3 comentários:

Unknown disse...

Minutos atras recebi da Suzana Lisboa, querida amiga, a cópia do texto publicado pelo Caio Ricardo Bona Moreira, fiquei paralisado.Minha emoção é tanta que não sei comentar agora.São tantas lembranças.Sou velho agora, só consigo chorar. Emilio Ivo Ulrich.

Unknown disse...

Que bom ter lido tudo isso e conhecê-lo. Obrigado

Maria da Glória Lopes Kopp disse...

Uma história de amor linda em meio a tragédia da ditadura militar.