(Foto: Acervo família)
Quando descobri
a poesia de Luiz Eurico Tejera Lisboa, fiquei impressionado com a força,
visceralidade e urgência de uma revolução social inscritas em seus versos. O
poeta chamou a minha atenção não apenas pelo teor político de suas palavras,
mas também pelos gestos de uma corajosa e precoce luta cuja história é ainda
pouco (re)conhecida.
Nascido em Porto
União mas criado no Rio Grande do Sul - primeiro em Caxias do Sul e depois em
Porto Alegre -, o Luiz Eurico foi um dos jovens militantes mortos pela Ditadura
Militar.
Ico, assim
chamado pelos mais próximos, ingressou no Movimento Estudantil nos anos 60,
sendo preso pela primeira vez em 68 por fomentar um abaixo-assinado a favor da
reabertura do Grêmio Estudantil da escola que frequentava. Um pouco depois
passou a integrar o quadro militante da ALN (Ação Libertadora Nacional). Em
1969, casou com Suzana Keniger Lisbôa, sua companheira de ideais e luta. Com
ela, o jovem entrou na clandestinidade. Em 1972, foi encontrado morto no quarto
de uma pensão em São Paulo. O episódio, repleto de mal-entendidos, culminou com
o desaparecimento de seu corpo. A família só descobriria o destino de seus
restos mortais em 1979. Aliás, Luiz Eurico foi a primeira vítima da ditadura a
ter seu corpo localizado. Estava em uma vala clandestina do cemitério de Perus
(SP). Em 2013, a Comissão da Verdade refutou a versão de que o jovem havia
cometido suicídio. Uma série de estudos no laudo apontaram para um assassinato,
consignando-se, assim, uma nova versão. Como na história de Vladimir Herzog, a
construção de uma verdade mentirosa foi a forma que a repressão encontrou de
proteger os verdadeiros assassinos e suas mãos manchadas de sangue.
(Foto: Acervo família)
Impossível
resumir a vida de Luiz Eurico em tão poucas linhas. Seria preciso muito mais do
que um punhado delas para acertar as contas com a sua história, que é parte de
um passado ainda recalcado e que paira como fantasma na nossa política
contemporânea.
Em um tempo no
qual o país volta a flertar intensamente com excepcionalidades políticas,
evocar a memória de Ico por meio de seus versos é uma forma não só de revisitar
o passado, convocando o presente a não repeti-lo, mas também de chamar a
atenção contra toda e qualquer violência de Estado, vista por muitos como uma
condição para normalidade. Não, um estado de exceção não é um paraíso. Está
mais para o inferno. Nesse inferno social, reinam a contradição, a falta de
sentido e de dignidade. Difícil ali julgar os homens como mocinhos ou bandidos,
mas certamente uma violência normatizada e normalizada por um Estado é sempre o
signo soberano de uma barbárie. Vivemos em um tempo doente no qual alguns dos
que nos representam na política defendem torturadores, elogiando a ditadura, a
censura, a morte, entre tantas outras monstruosidades, tudo com uma
naturalidade que aos olhos dos mais atentos soa como um absurdo atroz. Conhecer
a vida e a obra de jovens como Luiz Eurico é hoje mais do que importante. É
fundamental. Infelizmente, jovens – geralmente pobres e negros - continuam
morrendo nas mãos no Estado todos os dias, por meio de seus aparelhos
repressores e de sua omissão. Índios têm sido assassinados com a conivência de
um sistema desigual e omisso em relação a uma promoção mais justa dos direitos
humanos. Quem matou Marielle? O que fazer com seus corpos? O que fazer com suas
memórias? O que fazer com o sangue que mancha a todos no nosso calejado dia a
dia.
(Fotos: Acervo família)
Certamente, o
contexto da escrita da obra de Lisbôa contribui para a sua importância. Como o
poeta Paulo Martins - protagonista de “Terra em Transe”, de Glauber Rocha, e
vivido no cinema pelo ator Jardel Filho -, o Luiz Eurico mesclou poesia e
revolução de forma intensa: “Eu / Sou poeta da Revolução / A minha pena é minha
espada / E o meu canto / se eu canto / é um canto de guerra”. Eis sua
poética/política.
Em outro texto,
o poeta defende a palavra como uma arma, aproximando-se, assim, de uma farta
linhagem dos poetas sociais. A diferença é que Luiz Eurico morreu por sustentar
essa palavra: “A palavra deve ser uma arma / sem requintes inúteis / de funções
evidentes / claramente parcial / e partidária / para ser contundente / e ser na
História”.
Foto que integrou a exposição Ausenc’as (lê-se
“ausências”), produzida pelo fotógrafo argentino Gustavo Germano, no O Memorial
da Resistência de São Paulo, em 2015.
O comovente
poema “Balada de Ham-Li”, por sua vez, descreve a morte de um menino na Guerra
do Vietnã, observando que o coração daquela criança “pulsa / inalterado / sobre
todo o Vietnã”. Quantos corações de meninos mortos pulsam inalterados sobre o
nosso país, de uma periferia a outra?
Poucos sabem,
mas Luiz Eurico foi o irmão mais velho do grande compositor e intérprete gaúcho
Nei Lisboa. Sobre ele, o músico escreveu a bela lembrança: “Estivemos juntos
pela última vez, Ico, Suzana e Eu, em clandestina semana do inverno de 72 na
praia do Pinhal. Condições ideais, aos meus púberes treze anos, para uma
pós-graduação na arte de fazer pandorgas. Nela colávamos, em papel de seda, a
lança de mira, símbolo da ALN. Algumas vezes atingiam o infinito azul do céu,
noutras se despedaçavam entre os fios de luz atravessados no caminho. Não se
pode acertar sempre. Mas ele, certamente, não morreu de medo”. Poucos sabem
também que Luiz Eurico foi amigo de João Gilberto Noll, um dos maiores escritores
da literatura brasileira contemporânea, falecido recentemente. Os dois foram
amigos de escola e sobre Ico o prosador escreveu um belo texto intitulado “O
Denso Silêncio de Lisbôa”, publicado na antologia “Condições Ideais para o
Amor”, que reúne a poesia de Luiz Eurico, publicada pela Editora Tchê em
parceria com o Instituto Estadual do Livro, do Rio Grande do Sul, em 1993, numa
edição organizada por Antonio Hohlfeldt, que traz também algumas
correspondências do poeta-guerrilheiro trocadas com Suzana. O livro é um relato
do amor de Ico pela companheira, pela luta, pela vida e por um Brasil mais
justo e fraterno. Um Brasil que seu sangue regou mas ainda não viu nascer.
(Foto: Acervo família)
O poeta tinha 24
anos quando foi assassinado. Fruto de uma juventude que via Che Guevara e Cuba
como símbolos de sua utopia, Luiz Eurico foi um dos jovens que acreditava que
essa luta deveria ser vivida intensamente. Se algumas décadas depois a História
provou que nenhum lado da moeda é perfeito e completamente justo (ditaduras de
esquerda ou de direita são sempre ditaduras, e não era a favor de uma ditadura
que lutou Luiz Eurico), isso não diminui a truculência com a qual esses jovens
sonhadores foram mortos em um estado de exceção que volta cada dia mais a nos
assombrar. O poeta morto permanece um pouco vivo em seus versos, bem como o
sistema repressor que o aniquilou. Sua poesia e memória nos convocam a ficarmos
sempre alertas. Como escreveu a viúva de Luiz Eurico em um texto que integra o
livro: “A verdadeira democracia jamais será construída sobre os cadáveres
insepultos dos companheiros assassinados e sob as mãos impunes de seus
assassinos”. Quando fizermos um verdadeiro e justo acerto de contas com a nossa
própria história talvez venhamos a assistir com menos frequência à defesa do
horror promovida contraditoriamente em nome da paz e da normalidade.
Manuscritos do poeta:
Manuscritos do poeta:
Poema escrito em
24 de novembro de 68
Dedicado ao
filho que o poeta não teve
Ao
Suzico
Meu filho
Escrevo
agora estes versos para que
saibas
algum dia
que
estas mãos que empunham a metralha
e
semeiam a morte
este
olhar resoluto de soldado
têm
algo mais que o impulso
mercenário
e
o querer individual.
Para
que saibas que estas mãos
escreveram versos
estes
olhos vislumbraram a beleza
de um outro dia
e
este peito coberto de cicatrizes
já
abrigou a paixão e o amor.
Para
que saibas
que
desde o primeiro passo
fui
presa até a última fibra
da poesia
E
que a metralha e a luta
são
em tempo certo
o
meu maior poema
a
grande mensagem de
um artista
Publicado no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 23 de maio de 2020.
Publicado no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 23 de maio de 2020.
3 comentários:
Minutos atras recebi da Suzana Lisboa, querida amiga, a cópia do texto publicado pelo Caio Ricardo Bona Moreira, fiquei paralisado.Minha emoção é tanta que não sei comentar agora.São tantas lembranças.Sou velho agora, só consigo chorar. Emilio Ivo Ulrich.
Que bom ter lido tudo isso e conhecê-lo. Obrigado
Uma história de amor linda em meio a tragédia da ditadura militar.
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