Mário Peixoto
O conto Missa do Galo, de Machado de Assis, foi publicado em livro pela primeira vez em 1899, em Páginas Recolhidas, sete anos antes do lançamento de Relíquias de Casa Velha, em 1906. Páginas Recolhidas apresentava como
epígrafe a seguinte frase de Montaigne, extraída do primeiro livro dos Essais: “Quelque diversité d´herbes
qui´il y ayt, tout s´enveloppe sous le nom de salade”. A presença de Montaigne
não é fortuita na obra. Ela se justifica na variedade do livro, uma espécie
de “salada”, reunião de textos como crônicas, contos e novelas, muitos dos
quais publicados inicialmente nas folhas de jornais da época, em datas
diversas.
O contexto do qual
participa a publicação do livro é de grande euforia no cenário cultural. No ano
anterior, Machado fora eleito presidente da Academia Brasileira de Letras. Em
1900, a Garnier publica integralmente
o romance Dom Casmurro.
Acontecimentos como o suicídio de Raul Pompéia, em 1895, e o fim de Canudos, em
1897, ainda ressoavam enquanto se anunciava um novo Rio de Janeiro, que
passaria por grandes transformações em sua reurbanização, iniciada em 1904,
pelo prefeito Pereira Passos, uma espécie de Barão Haussmann dos trópicos.
Brito Broca (1960), em A vida literária
no Brasil - 1900, assinala que a transformação da paisagem urbana se
refletia na paisagem social e igualmente no quadro de nossa vida literária.
Tais mudanças anunciavam não apenas uma nova paisagem a ser descrita, mas
principalmente novos modos de operar na literatura as complexas relações entre
o homem e o mundo[1]. Na
mesma época, José do Patrocínio traz da Europa para o Rio parisiense o
automóvel, fazendo todo mundo correr espantado “para contemplar aquela máquina
diabólica, de que se desprendia muita fumaça e um cheiro insuportável de
gasolina” (BROCA, 1960). Entre a derrocada de um sistema messiânico, que
resultaria na morte de Antônio Conselheiro, e o anúncio de um Brasil moderno,
pautado pelo nascimento do século XX, uma Missa
do Galo.
Difícil dizer se a Conceição pintada por
Machado seria uma femme fatale ou uma
femme fragile; um tipo de personagem
presente em outros textos do escritor, e que encontraria em Capitu sua fórmula
máxima. É provável que essa margem de indecisão seja o fator primordial do
fascínio da personagem de Missa do Galo
em outros escritores. Não muito distante estaria Salomé, figura bíblica que inspirou várias representações na
pintura, no cinema e na literatura, principalmente no século XIX. Salomé ora
seria uma espécie de anjo, mesmo no momento em que pede a cabeça de João
Batista, ora uma devassa, como fora representada na peça homônima de Oscar
Wilde. É justamente por aparecer e desaparecer, como que escorregando para o
vazio, delicadamente envolta em levíssima musselina de um amarelo junquilho
pintalgado de preto, que Salomé, de Jules Laforgue, ganha contornos de um anjo
que seduz ao mostrar e não mostrar ao mesmo tempo o seu corpo. Visão semelhante
é a do narrador que contempla o “aparecer” e “desaparecer” do corpo de
Conceição:
Pouco a pouco,
tinha-se reclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto
entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas as mangas, caíram naturalmente,
e eu vi-lhe metade dos braços, muito claros, e menos magros do que se poderia
supor (...).
Deu
volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a
furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o
roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas (MACHADO DE
ASSIS, 1959).
A
frase bastaria para fundamentar a própria teoria implícita na produção
imagética de Mário Peixoto, que, por sinal, era avesso a teorizações. Blanchot
nos diz que ver supõe a distância, “a decisão separadora, o poder de não estar
em contato e de evitar no contato a confusão” (1987). Se tomássemos esse
contato meramente como um completo aparecimento, deveríamos concordar que tal
experiência, mais do que trazer confusão, esvaziaria o próprio contato. Falemos
então em aparecimento-desaparecimento.
O que parece interessar a Mário é justamente o hífen (hímen), aquilo se
apresenta como resto no jogo do
aparecer e do desaparecer, um entre-lugar.
Dessa maneira, o que vemos à distância pode também sugerir um tipo de “toque”. O
hífen não seria mais que o erótico, fundamentando
a lógica de suas imagens. Se fosse pornográfico, o excesso resultaria numa
espécie de falta; não seria mais que um contato esvaziado pela própria presença.
Questão semelhante nos é apresentada por Roland Barthes, um escritor que soube
muito bem identificar na linguagem o que anteriormente chamamos de hífen:
O
lugar mais erótico de um corpo não é lá
onde o vestuário se entreabre? Na perversão (que é o regime do prazer
textual) não há ‘zonas erógenas’ (expressão aliás bastante importuna); é a
intermitência, como o disse muito bem a psicanálise, que é erótica; a da pele
que cintila entre duas peças (as calças e a malha), entre duas bordas (a camisa
entreaberta, a luva e a manga); é essa cintilação mesma que seduz, ou ainda: a
encenação de um aparecimento-desaparecimento (BARTHES, 2002).
No roteiro, o jogo mostrar-não mostrar, criado por Machado, é mantido:
114. CORTE. MEDIUM CLOSE SHOT
(...) uma
expressão de aborrecimento se desenha, e ela se inclina em direção ao chinelo
que caiu. Ao fazê-lo, o pano da gola do robe, que bambeara, abre-se, revelando o
começo dos seios e a separação entre eles (2000).
(...)
374. CORTE. CLOSE MEDIUM SHOT
do primeiro
plano do joelho de Helena. Câmera baixa; ao fundo, Abel. Helena segura a
bandeja. O robe começa a abrir.
375. CORTE. CLOSE MEDIUM SHOT
de Helena segurando
a bandeja, com a mão em primeiro plano. Ao fundo o robe que acaba de abrir vendo-se
a parte interna do joelho (2000).
Uma das diferenças
significativas do roteiro em relação ao conto é que os personagens são
apresentados com outros nomes: Conceição agora é Helena; Nogueira é Abel. Outro
fator importante é que Helena possui uma feição sedutora mais nítida do que
Conceição. Em vários momentos, impõe-se o desejo feminino como um dos motes que
conduzem o encontro. Criar uma imagem que represente esse fato é uma das
preocupações dos roteiristas, o que esclarecem numa das notas presentes no scenario: “A decisão de seduzir o rapaz
deve expressar-se claramente – mas não é uma sensualidade puramente carnal: há
uma certa espiritualidade nela, indefinível ternura, grande doçura e muita
delicadeza” (2000). Essa delicadeza se apresenta de maneira contundente
numa das cenas mais bonitas do roteiro, aquela em que o contato é traduzido em
imagem, num crescendo que culmina no ato mínimo do gesto:
428. CORTE. MEDIUM CLOSE-UP
de Helena.
Câmera aproxima-se dela. Pára. Mão de Abel entra em quadro pousa nos cabelos de
Helena, acaricia-os, depois penetra por eles sob a cabeça e puxa para a
objetiva até o máximo.
429. CORTE. CLOSE-UP
do rosto de Abel
crescendo para a câmera até o máximo.
430. CORTE. EXTREME BIG CLOSE-UP
dos lábios. De
lado: entram em quadro e lentamente se tocam – depois se unem -, se esmagam.
431. CORTE. EXTREME BIG CLOSE-UP
de pingo de água
na janela – “explode” em luzes... (2000).
Julio Bressane, um
cineasta que se interessou pela obra de Machado de Assis, e que criou uma
versão de Memórias Póstumas de Brás Cubas,
em 1985, observa que o que é fundamental nesse tipo de atividade é a tradução criativa, uma desleitura capaz
de forçar os limites do meio traduzido: “tradução em cinema faz-se com
luz-movimento-angulação-montagem” (BRESSANE, 2000). Essa espécie de tradução identificadora poderia ser
pensada como uma espécie de profanação
- tal como aquela desenvolvida pelo grupo de Osman Lins -, que não estaria
preocupada nem em repetir o original, o que seria mesmo impossível; nem em
destruí-lo, o que anularia a própria idéia de uma possível desleitura. Lembremos com Giorgio Agamben (2007) que profanar não
significa destruir, mas aprender a fazer um uso novo do objeto profanado. O
espaço profanador em que circula tal prática seria responsável por fundar uma
maneira diferente de operar a própria noção de transformação:
Descobrir a luz,
o ritmo, o fino fio de uma tradição de clichês cinematográficos que,
transformados, transvalorados, recriados, reinventados, podem, de alguma
maneira, nos sugerir, nos remeter, dar-nos uma idéia do formalismo do texto, do
objeto, do humor, do mau humor, do original (BRESSANE, 2000).
Mario Peixoto e Saulo
Pereira de Mello trabalharam em Outono/O
jardim petrificado em prol da desleitura,
o que faz com que o roteiro ganhe um traço poético fortemente marcado pela
justaposição de planos sugeridos.
Julio Bressane, no
artigo intitulado “Brás Cubas”, presente em Cinemancia,
observa: “Brás Cubas filme começa por objetos sólidos, passa às águas de um
poço e depois ao mar. De líquido torna-se fumaça, neblina, nuvem e termina no
céu gasoso. De imagem saturada a imagem rarefeita. Do figurativo ao abstrato.
De todas as cores ao branco” (2000). Essa valorização do branco, uma
espécie de procura do Neutro, em que
as imagens rarefeitas ganham força, já pode ser encontrada na definição
apresentada por Saulo Pereira de Mello sobre o cinema de Mário Peixoto: “Em
cinema tudo deve ser indireto. Esta formulação simples, como todas as de Mário
Peixoto, resume, na verdade, toda a poética do cinema silencioso do qual seu
filme Limite é a obra final, resumo e
remate” (2001). Esse reino absoluto do
indireto poderia ser lido como uma perversão da própria linguagem. Nesse reino,
acredita-se na infinita possibilidade narrativa da imagem.
É como se as imagens tivessem vida e pudessem se relacionar umas com as
outras. Aliás, uma das cenas de Outono/O jardim petrificado nos faz
lembrar uma das passagens de Dom Casmurro, aquela em que o narrador descreve
os olhos de ressaca de Capitu: “442. CORTE. LONG SHOT de Helena – como no shot
número 250. Onda se formando, erguendo-se – quebrando e correndo – câmera segue
até que “explode” em rochedo. Ruído de mar” (2000). Esse parentesco
entre passagens, seja do roteiro com outros textos, ou entre as próprias cenas,
é um sintoma de imagens que funcionam como uma espécie de mônada leibniziana.
Ou seja, em cada cena do roteiro estaria presente a dobra da cena anterior e o
desdobramento da cena seguinte, ou mesmo todo o roteiro. Os corpos de Helena e
Abel seriam também o espectro das duas estátuas que aparecem no início do
texto, povoando o jardim petrificado, à espera de um incidente que possa mudar
o seu estado de pedra, dar-lhe vida, permitir-lhe o amor. O incidente poderia
ser uma folha que cai no outono. Poderia também ser o encontro enigmático entre
um jovem e uma mulher casada, um encontro que transforma em imagem o gesto de
um amor que não se realiza; o único amor que se concretiza aqui é entre o
cinema e a literatura. Para finalizar poderíamos perguntar: “Por que dois
títulos?” Outono é de Mário. O Jardim Petrificado é de Paulo. Talvez
o conto de Machado de Assis nos responda.
[1] Talvez seja na modalidade da
crônica que Machado apresente de maneira mais contundente os reflexos do
processo de modernização do país. Não que seus romances não o façam, mas é por
meio de uma literatura não institucionalizada como a da crônica produzida no
final de século XIX que tais questões aparecem com mais freqüência. É o que Ana
Luiza Andrade analisa em Transportes pelo
olhar de Machado de Assis: “Machado de Assis foi um leitor de seu tempo e
do nosso. De seu olhar transicional entre oitocentistas e novecentistas
despontam radicais transformações, substituições e deslocamentos culturais, a
partir da industrialização. No trânsito finissecular para a modernidade,
coincidente com os inícios da reprodutibilidade técnica e com a chegada da
imprensa de maior circulação, Machado se projeta, entre o feitiço do olhar e o
fetiche do capital, sobre a crônica como metonímia abreviada e desligada de uma
literatura institucionalizada” (1999, p.18).
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