domingo, 13 de novembro de 2016

Os Formalistas


Maiakóvski

Maiakóvski, em 1914, num artigo intitulado “Os dois Tchekhov”, afirmou que Tchekhov fora o primeiro escritor da literatura russa a compreender que o escritor apenas modela um vaso artístico, e que não importa se ele contém vinho ou porcarias.[1] 
A posição tomada por Maiakóvski está intimamente ligada à sua intrínseca relação com o movimento futurista. A afirmação poderia ser vista como uma afronta pelos historiadores da literatura na época. No entanto, não deveria ser lida como um convite ao descaso para com o conteúdo, mas como uma observação consciente de que não há qualquer possibilidade de se pensar o conteúdo sem atentar para a forma. Essa concepção é levada ao extremo chegando a ponto de se perceber que as categorias forma/conteúdo não poderiam ser pensadas à luz de uma ruptura que colocasse a forma de um lado e o conteúdo de outro. 
É nesse mesmo período de efervescência cultural que surge na Rússia o Círculo Linguístico de Moscou. Leitor de Maiakóvski, Roman Jakobson foi o responsável pela fundação do grupo. Em 1915, tem-se o primeiro encontro do movimento que teve como objetivo promover a linguística e a poética. Segundo Erlich:

O escopo real da atividade do Círculo era mais largo do que o seu nome implicaria. Nos primeiros dois anos os problemas do folclore e da dialetologia russos ocuparam o centro do palco. Mas, mais tarde, a ênfase principal passou do levantamento de dados linguísticos para as discussões metodológicas tanto sobre a poética como sobre a fala prática.

Inserido num contexto czarista, seguido de um regime stalinista, o grupo acaba se dissolvendo, não durando mais do que quinze anos, mas nem com isso perdeu forças, visto que os seus membros continuaram desenvolvendo estudos de interesse do grupo. Boris Schnaiderman demonstra estranheza ante o fato de que enquanto Maiakóvski era exaltado na Rússia[2], o formalismo era condenado radicalmente. Essa estranheza reside no fato de que as idéias do primeiro estavam intrinsecamente ligadas ao movimento formalista. Para ele, a relação de Maiakóvski com o Formalismo Russo ficou marcada pelo apreço que dedicava aos críticos daquela corrente, como iniciadores de uma determinada metodologia que permitiria ao escritor e ao poeta apoiar-se numa teoria de produção.

Roman Jakobson

Schnaiderman lembra o fato de que quando os formalistas eram alvo de ataques, Maiakóvski defendeu a ideia de que eles prosseguissem. Para o futurista, a escola formal não contradizia o marxismo.
 É equivocado o pensamento de que os formalistas não se preocupavam com o social e com o histórico. É claro que sem esses fatores não existiria literatura, mas eles fugiam da especificidade de suas análises, visto que o objetivo principal era chamar a atenção da análise literária como uma ciência autônoma que visse a próprio texto literário como elemento fundamental nos procedimentos análise.[3]


Um ano depois (1916) surge o OPOYAZ (Sociedade para o Estudo da Língua Poética). Para Erlich:

A OPOYAZ era um tanto mais heterogênea do que sua contrapartida de Moscou. Esta representava a incursão coletiva de lingüistas na poética. Aquele era uma “coalização” de dois grupos distintos: os estudantes profissionais da língua da escola de Baudoin de Courtenay, tais como Lev Iakubinski e E. Polivanov e S. I. Bernstein, que tentavam resolver os problemas básicos de sua disciplina por meio da lingüística moderna.

Podemos dizer que o ponto de encontro ente o Círculo Linguístico de Moscou e a OPOYAZ será justamente a insistência na ideia da impossibilidade de dar conta do “literário”, afastando-se do que é intrinsecamente literário.
Peter Steiner sintetiza as três principais correntes do formalismo em três metáforas: a máquina, o organismo, o sistema.
O conceito de máquina, para Steiner, é a figura mais visível do primeiro instante do Formalismo. Tezza cita uma carta de Chklovski enviada a Jakobson. Nela, comenta: “Nós sabemos como é feita a vida, e também como são feitos o Dom Quixote e o automóvel.”[4]
A imagem de “organismo”, segundo Steiner, tem como figura mais proeminente Vladimir Propp. O autor, em “As transformações dos contos fantásticos”, considerado por Tezza e outros como um formalista tardio, coloca a seguinte questão:

Podemos, a vários títulos, comparar o estudo dos contos com o das formas orgânicas da natureza. O folclorista, tal como o naturalista, ocupa-se de fenômenos diversos que, na sua essência, são contudo idênticos. A questão da origem das espécies colocada por Darwin pode ser colocada também no nosso domínio. 

As estratégias usadas por Propp eram tipicamente formalistas. Basta observarmos as já lembradas invariantes para concordar com o fato de que Propp poderia ser considerado um formalista.

Wladimir Propp

Morfologia da Fábula foi publicado por Propp em 1928. Nela, o formalista fazia uma descrição sistemática das fábulas, explorando a questão da transferibilidade que, como lembra Haroldo de Campos, explicava porque determinados elementos de uma fábula poderiam ser encontrados em outras.
Em Morfologia de Macunaíma, Haroldo de Campos (1873) aplica as funções desenvolvidas por Propp no livro de Mário de Andrade, coincidentemente publicado no mesmo ano de Morfologia da Fábula. Sobre a teoria de Propp, Haroldo lembra que ele estava preocupado em fazer uma descrição sistemática da estrutura fabular. Para o formalista, as fábulas possuíam uma importante característica: “as partes componentes de uma poderiam ser transferidas para outra, sem modificação alguma, a chamada lei de transferibilidade”.
Dentro dessa proposta, os personagens das fábulas poderiam ser os mais diversos, mas as ações praticadas por eles seriam poucas. A essas ações Propp chamou funções, individuando 31 e depois examinando a maneira como elas se organizariam num eixo sintagmático.

Desenho de Maiakóvski

          Assim como Propp, que recorreu a inúmeras fábulas para então criar um protótipo, uma “fábula” de todas as fábulas, Mário de Andrade buscou reunir no folclore temas que pudessem ser trabalhados na confecção de uma “rapsódia brasileira”, uma espécie de bricolagem literária. A diferença é que Propp não escreveu propriamente uma fábula, mas um modelo que visava ao auxílio da teoria por meio de uma análise estrutural.



[1] O artigo apareceu na revista Nóvaia jízn (Vida nova), em junho de 1914, por ocasião do décimo aniversário de morte de Tchekhov. A Poética de Maiakóvski, de Boris Schnaiderman, traz o artigo na íntegra traduzido para o português.
41 Ripelino comenta o fato de que o Futurismo chegou a ser protegido pelo regime socialista e por vezes chegou a ser considerado como uma tendência oficial no campo das artes. 
[3] Segundo Eikhenbaum, para os formalistas o essencial não era o problema com o método nos estudos literários, mas a literatura enquanto objeto de estudo.
[4] Para Chklovski, uma pessoa que deseja se tornar um escritor deve examinar um livro com a mesma atenção com que um relojoeiro examina um pêndulo ou um mecânico um automóvel.

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