Caio Ricardo Bona
Moreira[1]
Esse
professor não inculcava o saber, ele oferecia
o que
sabia. Era menos um professor do que um mestre
trovador,
um desses malabaristas de palavras
que
povoaram as hospedarias do caminho de Compostela
e
diziam canções de gesta aos peregrinos iletrados
Daniel
Pennac, em Como um Romance
1.O LUGAR DAS
REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DA LITERATURA
Os
debates interessados nos estudos literários no Brasil, ainda hoje, têm dedicado
pouco espaço para as discussões sobre o ensino da literatura, deixando, assim,
a desejar no que se refere a uma das questões mais proeminentes que envolvem a sua
própria condição de existência. A ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura
Comparada), por exemplo, que promove um dos maiores congressos da área na
América Latina, no ano de 2013, apresenta no programa do evento cinquenta e
três simpósios. Deles, apenas dois estão diretamente interessados em refletir
sobre o ensino. Nos programas de pós-graduação em estudos literários, o espaço
ainda minoritário delegado a esse tipo de investigação parece refletir em uma
determinada "falta de lugar" das reflexões sobre o ensino da
literatura na graduação, ou seja, das questões que envolvem o preparo dos
acadêmicos para o trabalho com a literatura nas escolas. Muitas vezes, a
disciplina de metodologia do ensino nos cursos de licenciatura em Letras fica
restrita à área de língua portuguesa. Esta tem como eixo norteador as reflexões
sobre concepções de linguagem e as atividades pedagógicas que envolvem o estudo
da língua e a sua prática, fundamentadas principalmente na linguística. Mas
pergunto, seria o texto literário um ato de linguagem como os outros? Será que
as mesmas orientações pedagógicas dirigidas ao ensino de língua funcionam
também para o ensino de literatura?
Na
já citada metodologia do ensino, a literatura - mesmo sendo objeto de relativo
interesse em Parâmetros Curriculares Nacionais e Diretrizes Curriculares da
Educação -, muitas vezes, acaba ficando em segundo plano, sendo, assim, tratada
como uma atividade acessória ou menos importante que o trabalho de leitura e
produção de textos com finalidades pragmáticas e a sua consequente reflexão
linguística em sala de aula tendo em vista competências específicas.
Como
professor, não poucas vezes assisti a cenas de quase segregação de áreas,
vindas de colegas de trabalho ou dos próprios alunos, como se o curso de Letras
fosse um lugar de guetos responsáveis por dividir os pesquisadores em grupos,
cujos membros estariam situados entre "aqueles" da literatura e
"aqueles" da linguística. Como se essas áreas específicas não
pudessem conviver, harmoniosamente, apreendendo umas com as outras no universo
das linguagens e dos discursos; e como se não tivessem um compromisso comum no
processo educacional. Para uns, erroneamente, há na linguística uma
sistematização exagerada, que faz dela uma disciplina "chata" ou por
demais "abstrata". Para outros, também erroneamente, a literatura é
uma área desprovida de sistematização, um lugar apenas de gozo, de fruição, e
não de verdadeira construção do conhecimento. Naturalmente, esses argumentos
estão desprovidos de um sentido válido e merecem reavaliação. Assim como a
linguística e mais especificamente o estudo da língua portuguesa podem aprender
com a literatura, esta pode "lucrar" com as investigações
desenvolvidas pelas "irmãs" de área. Basta citar um exemplo, o do formalismo
russo que, com o grupo Opoyaz (Sociedade para o Estudo da Língua Poética),
constituído por linguistas e teóricos da literatura, no início do século XX, intentou
aliar, com boa dose de sucesso, estudos da linguística e da literatura, promovendo com presteza um diálogo
interessante entre os dois universos.
Julgo
necessário expor um fato observado que, mesmo não podendo ser comprovado com
dados quantitativos, demonstra uma realidade que deve ser repensada. Ao longo
de alguns anos, participando de congressos brasileiros tanto de linguística
quanto de literatura, percebi que a maior parte das reflexões sobre o ensino na
área de Letras, tem partido de linguistas e não de literatos[2].
O que me leva a perguntar o motivo pelo qual estes, em sua maioria, se abstêm
de uma reflexão mais constante e pontual sobre o ensino da literatura. Se há
uma "perda de espaço" ou uma "falta de lugar", isso não se
daria também devido à ausência de uma comunidade interessada em imaginar
políticas alternativas para a sua realização efetiva? Não penso que todos os
pesquisadores da literatura deveriam preocupar-se com o andamento de sua
disciplina no ensino fundamental ou médio, ou que teriam a obrigação de assumir
compromissos com a pedagogia mas que, cada vez mais, grupos de pesquisa e
políticas institucionais devem ser fomentados tendo em vista uma preocupação
constante com os rumos do trabalho relacionados com a metodologia do ensino da
literatura. Ou seja, não devemos cessar de lançar a pergunta: Como estamos
formando os nossos professores?
Com
a falta de uma efetiva reflexão sobre o ensino da literatura, os cursos de
Letras acabam padecendo de um mal que, muitas vezes, reflete-se na postura dos
professores recém egressos da graduação, em um círculo vicioso que pode
perdurar ao longo da atividade profissional dos educadores. É possível que todo
acadêmico de licenciatura em Letras, interessado em ingressar no
magistério, se pergunte, pelo menos uma
vez ao longo do processo de sua formação, sobre os procedimentos mais eficazes
que deve adotar para ensinar com eficiência a literatura em sala de aula,
despertando em seus futuros alunos o gosto pela leitura, pela reflexão, e pela
escrita. Faz parte do cotidiano de seu curso discutir com frequência assuntos
relacionados à formação do leitor, à importância do trabalho com poesia e prosa
em sala de aula, às metodologias de ensino de línguas materna e estrangeira,
bem como da literatura. Todavia, surge eventualmente um impasse perturbador: O
que fazer realmente com o texto literário em sala de aula? Como desenvolver
estratégias de trabalho com a poesia e prosa? Que teoria seguir? Há tal teoria?
A estética da recepção[3],
por exemplo, que fundamenta as Diretrizes Curriculares da Educação, do Estado
Paraná, consegue orientar efetivamente o trabalho dos professores? E os livros
didáticos, estão trabalhando de maneira eficaz com o texto literário[4]?
E os PCNs, resolvem todos os nossos problemas?
Susana
Scramim, no texto "Réquiem para uma disciplina ou o momento privilegiado
para refletir sobre a metodologia do ensino de literatura", observa que há
nos Parâmetros Curriculares Nacionais um grave problema de compreensão sobre o que é propriamente
literatura, sua função e seus sentidos:
Em nenhum momento nos
Parâmetros Curriculares se define ou mesmo se caracteriza o que é a literatura.
Tampouco aparece caracterizado aquilo que seriam os Estudos Literários. No
texto dos Parâmetros, sempre que a literatura é tema de alguma explanação, ela
é apresentada por meio de uma atividade e de um comentário sobre uma
pressuposta especificidade, a qual em nenhum momento é comentada (2008, p.
202).
A
pesquisadora questiona também o fato de muitas vezes os Parâmetros associarem
atividades de reconhecimento de linguagens "padrão culto" e "padrão
popular" com a leitura do texto literário, o que pode ser uma empresa de
risco, "risco de transformar o texto literário em um arquivo morto de
identidades linguísticas" (ibid., p. 203). Nesse sentido, é difícil
definir a literatura com os mesmos parâmetros com os quais se define um ato de
linguagem, porque a literatura não é um ato qualquer de linguagem, uma vez que
o ato de linguagem se esgota na sua comunicação: "Ele não existe mais como
potência comunicativa após o efetivo cumprimento da comunicação. E é na má
compreensão do que seja a literatura que os PCNs perdem a literatura"
(ibid., p. 2004). Ou seja, tratar a literatura como um "ato de
linguagem" a mais na sala de aula, aproveitando-se dela para fazer
meramente reflexão linguística, ou estudo de gêneros, ou simplesmente para
estudos historiográficos de períodos artísticos, significa produzir uma "prática
de despolitização", para usar uma expressão da pesquisadora. Por exemplo,
usar um poema de Patativa do Assaré apenas para mostrar como se fala no
Nordeste seria no mínimo leviano. Não estamos diante de algo acessório, que
acompanha - dois passos atrás, como mulher subjugada - o estudo da língua e da
gramática. Não seria fortuito lembrar o argumento de Roland Barthes, em sua Aula inaugural no Colégio de França, em
1977, que chamou atenção para o fato de que a literatura é um logro magnífico
que permite ouvir a língua "fora do poder", no "esplendor de uma
revolução permanente da linguagem" (s/d, p. 16). É o mesmo Barthes que
escreveu: "Se, por não sei que excesso de socialismo ou barbárie, todas as
disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é a disciplina
literária que deveria ser salva, pois todas as ciências estão presentes no
monumento literário" (s/d,p. 18).
É
na literatura, e mais especificamente na poesia, que a linguagem tem o poder de
experimentar a língua na sua máxima potencialidade. O que por si só já bastaria
para questionarmos o argumento que vê o texto literário como algo apenas
complementar nas aulas de língua portuguesa. Segundo o poeta Ademir Assunção, a
linguagem constrói mundos e quando um autor desautomatiza a linguagem, dependendo
do grau de sucesso nisso, "desautomatiza também a percepção do mundo dos
leitores e modifica a percepção da realidade, ou das realidades" (2006, p.
140). Se os textos literários, e mais especificamente a poesia, têm o poder de
desautomatizar a linguagem, desautomatizando, assim, a nossa percepção da
realidade, significa que, por meio dela, o ser humano tem o poder de vivenciar
uma outra experiência em relação à vida, aos afetos, ao pensamento, aos textos,
e a sua própria comunidade:
A poesia é uma espécie
de laboratório da língua, é o lugar onde ela, para usar um conceito de Gilles
Deleuze, desterritorializa a língua, ou seja, desfaz os sentidos “naturais” de
uma determinada fala, destrói o senso comum, devolve potência a regiões
domesticadas, nos lança nesse entre-lugar — entre o som e o sentido — onde as
certezas caem por terra. E aí talvez esteja um dos pontos de angústia de nossos
alunos. Aprender a trabalhar com essa angústia, a construir o sentido com a
paciência de quem monta um quebra-cabeça, é isso que podemos ensinar hoje em
dia. Os conteúdos, como nós mesmos às vezes dizemos, estão disponíveis nas
bibliotecas e na internet. O que ensinamos é menos um conteúdo e mais um modo,
uma maneira de operar. Fazendo uma analogia com a literatura, quando lemos um
texto literário devemos estar mais atentos à ficção do que a fábula, ou seja,
mais à maneira como se conta a história, do que ao enredo propriamente dito
(SANTOS, 2005, p. 1).
Creio que não há um consenso nas Diretrizes e
nos Parâmetros sobre o método mais eficaz de ensino da literatura. Permito-me,
no entanto, constatar que isso pode não ser tão ruim. Pelo contrário, nos
convida a vivenciar uma experiência que é uma experiência de risco, extraindo da aporia um sentido que não é apocalíptico. Para Todorov, todos os
"métodos" são bons, desde que continuem a ser meios, em vez de se
tornarem "fins em si mesmo" (2009, p.90) Para Susana Scramim, pensar
uma nova metodologia para a literatura é pensar a literatura como experiência
de risco, experiência com o que é "estrangeiro a nós mesmos", daquilo
que não se enquadra no contexto e do texto que é "estranho a si
mesmo":
Pensar a literatura
na sua experiência sem a garantia de um caminho seguro já trilhado é assumi-la
na sua vida interior, composta por formas fósseis que se caracterizam por serem
a soleira da potência do mundo empírico da literatura frente à sua correlação
entre tantas outras formas de vida interior [...] Portanto, a tarefa de uma
metodologia de aproximação do texto literário, hoje, depois do fim da história,
do fim dos Estados Nacionais e do fim da literatura, consistirá em identificar
e reconstruir a vida interior ou natural, como prefere Benjamin,
"das" obras em vez de se reconstruir "as" obras e
"as" criaturas. É importante não perdermos a literatura na
literatura, isto é, não importa identificar no texto as diversas linguagens ali
presentes, e constatar se estão, ou não, adequadas ao contexto que as produziu,
importa é não deixarmos escapar, bem como fazer "perviver", a sua
"potência de não" [...] (2008, p. 2010).
É
justamente por ser a "potência de não" que a literatura, bem como
outras artes - constantemente patrulhadas em períodos ditatoriais -, acabam
sendo uma espécie de "corpo estranho" dentro da escola. Como aliar a
seriedade da gramática (que continua tendo sua importância, diga-se de
passagem), já ironizada por Oswald de Andrade em poemas, e as necessidades
pragmáticas do trabalho com a linguagem em sala de aula, com a subversão da
língua e da ordem prefiguradas pela tão "estranha" poesia? A ausência
de um método de ensino pleno e seguro de si é reflexo da própria singularidade
da indomável literatura. Se a literatura é um mergulho no abismo do homem, do
mundo e da linguagem, cabe ao professor e aos alunos aprender a conviver com
esse abismo, extraindo dele um prazer e um conhecimento capaz de fazer valer a
nossa prática.
Partirmos
do pressuposto de que podemos tratar o ensino da literatura não como uma tarefa
constituída apenas pelas teorias oriundas da universidade, mas como a prática
de uma alegria partilhada no dia a dia. A leitura de textos literários continua
sendo uma atividade, muitas vezes, mecânica na sala de aula. Trata-se de um
problema conhecido e amplamente lamentado. Lê-se apenas porque é preciso,
porque faz parte das aulas de língua portuguesa exercitar a sua prática.
Inexistem políticas consensuais sobre os melhores procedimentos que devem ser
exercitados pelos professores no ensino fundamental e médio.
Uma
pergunta lançada por Daniel Pennac pode nos ajudar a repensar a questão:
"E se em vez de exigir a leitura,
o professor decidisse de repente partilhar
sua própria felicidade de ler? (2008, p. 73). Para que essa mudança de postura
seja possível, é necessário que o professor de literatura seja, antes de tudo,
um apaixonado. Daí a máxima de Pennac ao defender que o verbo ler "não
suporta o imperativo". Transformar a aula de literatura em uma máquina de
produzir resumos, ou em um campo de concentração onde cabe ao aluno a obrigação
de ler, para, então, realizar uma prova de leitura, ou seja, para que se cumpra
um protocolo, significa produzir mais "ledores" do que
"leitores", ou mesmo aumentar a estatística dos
"não-leitores" no triste cenário nacional.
Se
ensinar literatura é menos importante do que compartilhar com os alunos a sua
paixão, isso se dá porque, como sugere Michèle Petit, a leitura é uma
"arte que se transmite mais do que se ensina" (2009, p. 22). Em um
mundo saturado de memória, de conhecimento, de informação, o papel do professor
de literatura, mais do que o de transmitir conhecimento, é o de dividir com os
alunos a sua experiência de leitura, e o seu (in)consequente
"enamoramento" com a língua, com os autores, com as obras, e com suas
linguagens.
A
ausência de uma "receita", de um "manual de instruções", para
o professor de literatura, por um lado pode ser vista como um problema, já que
cria dificuldades àquele interessado em ensinar literatura. Por outro, pode
produzir uma experiência menos catastrófica em relação ao ensino, pois, com a
inexistência de um método régio e fixo, esse deixa de ser um fardo a ser
conquistado e passa a ser um processo em permanente transformação. Isso não
significa que não existem orientações que devam ser seguidas, experiências de
outrem que podem ser compartilhadas ou atitudes que podem vir inspiradas por
teorias variadas. Significa que, ao invés de perguntarmos "o que cobramos
ou como cobramos", "o que ensinamos ou como ensinamos?",
deveríamos perguntar "Como dividimos? Como compartilhamos?".
É
importante termos em mente que a maneira como se ensina literatura no Ensino
Superior é diferente de como ela pode ser ensinada nos Ensinos Fundamental e Médio.
Se a Teoria Literária, na universidade, pretende ensinar teoria, e um dos
objetivos principais da disciplina de Literatura Brasileira no curso de Letras
é traçar um panorama de autores, formando, assim, uma espécie de arquivo - bem
como produzir leituras criativas de obras e autores presentes nesse panorama -,
no ensino médio a atenção deve recair no trabalho efetivo com os textos
literários, e não especificamente em questões teóricas ou meramente
historiográficas. Não que elas não sejam importantes, mas que devem ser apenas
um instrumento para que o professor possa construir o seu percurso considerando
que, para o leitor, a "experiência" deve preceder a
"reflexão".
Na
literatura, sem "experiência" não há reflexão. Não falamos aqui da
"experiência" do adulto, do filisteu, que para Walter Benjamin, é
"inexpressiva, impenetrável, sempre a mesma" (2002, p. 21). Não falamos
da experiência daquele que viveu e tem a autoridade para ensinar. Falamos da
experiência como possibilidade de vivenciar um fato, de abrir-se para um
acontecimento. A experiência, nesse sentido pode ser uma descoberta alegre e
singular, aquilo que, de certa forma, é apresentado por Oswald de Andrade, no
poema "3 de maio", como uma definição de poesia: "Descobri com
meu filho de dez anos / que a poesia é a descoberta / das coisas que eu nunca
vi" (2001, p. 99). Mais importante para o jovem leitor do que saber a data
específica em que começou ou terminou um determinado movimento literário do
Brasil[5]
é ser motivado a ler as obras, extraindo delas uma energia capaz de iluminar
uma vida. A literatura pode muito, mesmo quando nos serve como distração ou
como forma de revelação do homem e do mundo.
Todorov,
em "Literatura em Perigo", ao refletir sobre a crise da literatura
não apenas na sociedade, mas também no ensino, observa que por não se dirigir a
especialistas em literatura, mas a todos, "o ensino médio deve ter como
alvo a literatura e não os estudos literários" (2009, p. 41). Nesse
sentido a tarefa mais difícil é a do professor do Ensino Médio e não a do
professor universitário: "O professor do Ensino Médio fica encarregado de
uma das mais árduas tarefas: interiorizar o que aprendeu na universidade, mas,
em vez de ensiná-lo, fazer com que esses conceitos e técnicas se transformem
numa ferramenta invisível" (ibid., p. 41).
Penso
que, ao invés de questionar qual seria a melhor "receita" para se ensinar
literatura, deveríamos mudar o foco e perguntarmos por que ainda não damos
atenção suficiente ao ensino da literatura nas escolas e como podemos proceder
em sala de aula diante do desprestígio do texto literário na escola que, por
sua vez, é também reflexo do desprestígio da literatura na sociedade. Antonio
Carlos Santos constata que vivemos em uma sociedade cuja única lei é a lei do
mercado e como mercadoria temos apenas "valor de troca", vendemos um
"conteúdo" a pessoas que, embora precisem dele, muitas vezes, não
acreditam que ele tenha algum valor:
Acostumados à aparente relação direta
das imagens técnicas com o mundo, os alunos têm dificuldades em entender que as
linguagens são sempre mediações, que entre nós e o mundo há um abismo e que a linguagem
é sempre um salto em direção a esse abismo, sem a certeza de que alcançaremos o
outro lado e até de que haja mesmo um outro lado: “Ó mar salgado, quanto do teu
sal / são lágrimas de Portugal!” nos diz Fernando Pessoa em sua melancólica e
utópica Mensagem para, na segunda estrofe, perguntar: “Valeu a pena? Tudo vale
a pena / Se a alma não é pequena” (SANTOS, 2005, p.2).
"Tudo
vale a pena / Se a alma não é pequena", diria o mestre português de Mensagem. Portanto, o momento não é de
lamentos. A luz da poesia insiste e incide sobre a sala. Continua valendo a
pena acreditar na possibilidade de conviver prazerosamente com elas, dentro ou
fora da sala de aula. Continua sendo uma tarefa digna incluir "as obras no
diálogo entre os homens". Todorov encerra seu estudo lembrando que cabe a
nós, adultos, transmitir às novas gerações "essa herança frágil, essas
palavras que ajudam a viver melhor" (2009, p. 94).
2. O PIBID E O ENSINO DA LITERATURA
É
nesse lugar já apontado, onde as reflexões sobre a metodologia do ensino de
literatura nos cursos de Letras é escasso, que o PIBID (Programa Institucional
de Bolsa de Iniciação à Docência)
cumpre, a meu ver, um papel de suma importância, capaz de suprir
possíveis carências no processo de formação de docentes. Como um de seus
principais objetivos é contribuir para uma articulação entre teoria e prática,
elevando a qualidade das ações acadêmicas nos cursos de licenciatura, bem como
inserir os acadêmicos no cotidiano escolar, proporcionando-lhes oportunidades
de criação e participação em experiências metodológicas, o programa acaba por
funcionar como uma oportunidade de vivenciar o ensino da literatura para além
dos bancos universitários. E por aliar uma prática prévia do ensino aos
conhecimentos produzidos em grupos de estudo, onde são enfocados, por exemplo,
os procedimentos de ensino da poesia e as estratégias de trabalho para com o
texto literário, o PIBID supre uma carência que é inerente aos cursos de
licenciatura. Ou seja, é o espaço onde os alunos podem refletir sobre uma
prática que, muitas vezes, não merece a devida atenção no andamento cotidiano
da formação tradicional. Essa é apenas uma das vantagens do programa que gostaria
de esmiuçar aqui.
No
caso do subprojeto Memórias Poéticas do
Vale do Iguaçu, desenvolvido no PIBID de Letras (Português-Espanhol) da
UNESPAR, campus de União da Vitória,
o interesse recai na poesia produzida na região, uma poesia que, geralmente, não
é contemplada em sala de aula. Nosso objetivo é não apenas criar com os
acadêmicos condições para o trabalho com a poesia nas escolas, mas também
mapear, investigar e disseminar a produção poética regional.
Hélder
Pinheiro, no livro A poesia em Sala de Aula
(2007, p. 43), fundamental para pesquisadores interessados no assunto, chama a
atenção para a importância do trabalho com a obra de "poetas locais"
nas aulas de língua portuguesa. Esses poetas, que não foram consagrados pelo
cânone e que não aparecem em livros didáticos, são, geralmente, desconhecidos
por grande parte da comunidade, inclusive pelos professores de língua
portuguesa. O desprestígio sofrido pela literatura regional, considerada muitas
vezes como provinciana, em relação aos clássicos nacionais ou universais, já dá
sinais de esgotamento. O tema do XIII Congresso da ABRALIC, de 2013, é
justamente a "Internacionalização do Regional". Trata-se de enfocar a
potência do regional para além das zonas fronteiriças.
No
Memórias Poéticas do Vale do Iguaçu,
almejamos retirar os poetas da "província", ou seja, intentamos
colocá-los em rede, propondo, dessa maneira, um diálogo da produção poética
local com outras esferas além do regional. Com o PIBID, ao passo que resgatamos
essa produção, valorizando aquilo que, constantemente, é obliterado no ensino
de literatura, propiciamos um encontro não apenas entre os acadêmicos e a sala
de aula, mas também entre a prática de ensino e a elaboração de outros
procedimentos de trabalho com o texto literário.
Várias
atividades acabam fazendo parte do cotidiano dos acadêmicos bolsistas ao longo
do projeto. Em um momento inicial, realizamos uma pesquisa de campo, mapeando a
produção literária local e estudando a obra de muitos poetas da região. Criamos
uma antologia poética que contemplou mais de cinquenta escritores locais, a
maioria deles sem obra publicada. Realizamos um documentário sobre a poesia com
a participação de alguns desses escritores e, atualmente, trabalhamos na criação
de um arquivo audiovisual com o depoimento de muitos deles. Trata-se de
registrar uma produção literária para gerações vindouras, "salvando"
os poetas do esquecimento.
Paralelamente
à pesquisa de campo, criamos um grupo de estudo com a finalidade de pesquisar a
teoria da literatura e possíveis metodologias do ensino de poesia. Essa
atividade, em certa medida, fundamenta o trabalho desenvolvido pelos acadêmicos
bolsistas nas escolas parceiras do subprojeto. O horizonte de todas as
atividades de estudo são as oficinas poéticas que, aplicadas em escolas
públicas do município de União da Vitória, estão pautadas por um processo que
envolve a leitura, estudo, e dramatização de poemas; produção de textos
literários; encontros com poetas locais; e disseminação das criações por meio
de exposições, saraus, antologias, bem como livros confeccionados de maneira
artesanal. Uma das preocupações do grupo é desenvolver atividades que sejam
diferenciadas e que possam fazer a diferença no processo de formação de leitores.
Aproveitar
o tempo e o espaço valiosos propiciados pelo PIBID pode ser uma possibilidade
não só de estreitar os laços entre a comunidade acadêmica e a escola pública -
esta representada pelos professores supervisores, cujo papel, pela dedicação e experiência,
é de valor inestimável -, mas também entre a teoria e a prática. No que se
refere à literatura, com o PIBID, as reflexões sobre a metodologia de seu
ensino e as intervenções práticas em andamento já demonstram conquistas
importantes, não apenas para os jovens leitores, para os professores
supervisores, para os acadêmicos, para os poetas, mas também para o próprio
curso de Letras, cuja estrutura ganha novos sentidos e outras possibilidades no
universo de uma partilha que será sempre uma bonita poesia.
3. REFERÊNCIAS:
ALVES,
J.H.P. Abordagem do poema: roteiro de um desencontro. In: DIONÍSIO, A.P.;
BEZERRA, M.A. O Livro Didático de
Português: múltiplos olhares. 2 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003.
ANDRADE,
O. de. Pau-brasil. 7 ed. São Paulo:
Globo, 2001.
ASSUNÇÃO,
A. Entrevista. In: Revista Et Cetera 9.
Curitiba: Travessa dos Editores, 2006.
BARTHES,
R. Aula. São Paulo: Cultrix, s/d.
BENJAMIN,
W. Reflexões sobre a criança, o
brinquedo, a educação. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2004.
PARANÁ.
Secretaria de Estado da Educação do Paraná. Diretrizes Curriculares da Educação
Básica (Língua Portuguesa). Curitiba: 2008.
PENNAC,
D. Como um romance. Porto Alegre:
L± Rio de Janeiro: Rocco, 2008.
PETIT,
M. A arte de ler ou como resistir à adversidade.
São Paulo: Ed. 34, 2009.
PINHEIRO,
H. Poesia na sala de aula. 3 ed.
Campina Grande: Bagagem, 2007.
SANTOS, A.
C. Poesia e imagem. In: Jornal Unisul.
v.92. Tubarão, 2005.
SCRAMIM,
S. Réquiem para uma disciplina ou o momento privilegiado para refletir sobre a
metodologia do ensino da literatura. In: SEARA, I. C. et al. (Orgs). Práticas pedagógicas e estágios: diálogos
com a cultura escolar. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2008.
TODOROV,
T. A literatura em perigo. Rio de
Janeiro: Difel, 2009.
[1] Doutor em Literatura Brasileira pela
UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina); Professor de Literatura
Brasileira na UNESPAR, campus de União da Vitória; Coordenador do subprojeto do
PIBID "Memórias Poéticas do Vale do Iguaçu", promovido pela CAPES.
[2] Basta compararmos a infinidade de
livros interessados no ensino da língua portuguesa que circula hoje no país com
a escassa bibliografia referente ao ensino da literatura.
[3] Nas DCEs de Língua
Portuguesa, do Estado do Paraná, encontramos a seguinte orientação: "(...)
sugere-se, nestas Diretrizes, que o ensino da literatura seja pensado a partir
dos pressupostos teóricos da Estética da Recepção e da Teoria do Efeito, visto
que essas teorias buscam formar um leitor capaz de sentir e de expressar o que
sentiu, com condições de reconhecer, nas aulas de literatura, um envolvimento
de subjetividades que se expressam pela tríade obra/autor/leitor, por meio de
uma interação que está presente na prática de leitura. A escola, portanto, deve
trabalhar a literatura em sua dimensão estética" (2008, p. 58).
[4] As reflexões sobre a presença da
literatura em livros didáticos ultrapassa os objetivos deste texto, no entanto,
gostaria de lembrar do estudo de José Hélder Pinheiro Alves, que realizou uma
importante análise das atividades com textos literários propostas por vários
livros didáticos. O pesquisador conclui seu trabalho afirmando: "Os
problemas detectados nos LDP (livros didáticos de português) não invalidam de
forma alguma sua utilização em sala de aula. Sabemos que as condições sociais e
a formação da absoluta maioria dos profissionais de ensino não permite que
abdiquem desses livros. E há valores inegáveis em muitos deles. O ideal era que
os autores, conscientes da especificidade do texto literário, repensassem o
modo de abordá-lo. Também não creio que
o afastamento do leitor jovem da poesia se deva apenas ao LD e à escola. Mas
não podemos negar que os dois não têm ajudado como poderiam ajudar. Se há
problemas bem mais fundos relativos ao afastamento de leitores da poesia, o
esforço para possibilitar ao leitor jovem o acesso a bons textos, abordados de
modo consequente, é de grande importância" (2003, p.73).
[5] Vale lembrar que os marcos iniciais
são arbitrários, não refletindo minuciosamente a emergência e a decadência de
um movimento estético.
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