Procurando explorar uma visão que
colocasse em xeque a concepção de história retilínea, Haroldo não hesitou em
“alfinetar” o olhar romântico de Candido. O sequestro do movimento não seria
perdoado pelo poeta concretista que, na esteira de outros teóricos
latino-americanos como Lezama Lima, enxergava no Barroco o “começo genial” da literatura
das Américas.
O ensaio de Haroldo parte de um
paradoxo. De um lado, Wilson Martins que, na esteira de Antonio Candido,
defendeu que Gregório de Matos não contribuiu para formar o nosso sistema
literário. De outro, Oswald de Andrade que, ao contrario, percebeu no poeta
baiano uma das maiores figuras de nossa literatura.
Segundo Haroldo, o estudo de Candido
estaria concentrado em duas séries metafóricas. Uma animista, decididamente
ontológica, centrada na ideia metafísica da presença, ou seja, a literatura
brasileira como a encarnação e representação do espírito literário nacional, e
a outra organicista, centrada na ideia de que a nossa literatura seria uma
floração gradativa, regida por uma teleologia que partiu de uma origem em
direção a sua autonomia. Para Antonio Candido, a nossa literatura seria um
galho secundário da portuguesa, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das
musas.
O conceito metafísico de história
envolve a ideia de linearidade e a de continuidade. Por isso é necessário a ela
determinar quando e como se definiu uma continuidade ininterrupta de obras e
autores, cientes quase sempre de integrarem um processo de formação literária.
Daí a necessidade de um começo.
Haroldo de Campos chama a atenção que na
Formação, de Candido, a mensagem, ou seja, o texto, a obra literária, não é
posta em relevo. A ênfase é dada ao mecanismo transmissor e de recepção, e não
à transmissão em si mesma. No mecanismo de transmissão e de recepção, o que
está em jogo são os fatores externos à obra e não internos. Haroldo compara o
sistema proposto por Candido com o esquema proposto por Roman Jakobson para a
estrutura e funcionamento da comunicação. O produtor equivaleria ao emissor da
mensagem. Nele estaria centrada a função emotiva. No caso da literatura
brasileira, seria a expressão de uma subjetividade romântica, os ideais do
poeta em relação ao país. O receptor da mensagem equivaleria ao público leitor.
Nele estaria concentrada a função conativa, ou seja, aquela que pretende
levá-lo a tomar uma posição, neste caso, a tomada de consciência da existência
social e espiritual de um povo, definindo um padrão de pensamento ou comportamento.
Entende-se agora o porquê da exclusão ou sequestro do barroco na Formação de
Candido. É que no barroco, a estética é enfatizada por meio da função poética e
metalinguística. Uma mensagem voltada para ela mesma (auto-reflexividade), ou
para o código. Contrariamente à linguagem comunicativa e econômica, reduzida à
sua funcionalidade – servir de veículo a uma informação – a linguagem barroca
se compraz no suplemento, no exagero. O barroco, poética da “vertigem do
lúdico”, da “ludicização absoluta de suas formas”, para usar expressões de
Afonso Ávila.
A concepção de história que gere o
estudo de Antonio Candido é monumental. Valoriza dos grandes feitos aqueles que
encarnam literariamente o espírito nacional. Logo, o que nele não cabe é posto
e lado, rotulado de “manifestações literárias” por oposição à literatura
propriamente dita, à literatura enquanto sistema. É o que aconteceu não apenas
com Gregório de Matos, mas também com Padre Vieira, ou mesmo Joaquim de
Sousândrade, que participa do contexto histórico do romantismo, mas que ficou
de fora do cânone, sendo resgatado com força apenas no século XX justamente
pelos concretistas.
A questão do público, tal como é
abordada por Candido parece ser um problema, já que nem todo escritor depende
do meio, das concepções e da ideologia de seu público. Tome-se como exemplo a
produção simbolista, que se volta em grande parte contra o mundo burguês,
deixando de lado a questão do público como fundamental para a existência do
literário. Ou seja, o fato de Gregório de Matos ter um público reduzido não
significa que não possa ser considerado legitimamente como poeta. Em outras
palavras, não podemos postular que, onde não haja um público sistêmico, não
haverá literatura propriamente dita e digna de registro.
O sequestro de Gregório no Brasil seria
semelhante à gongorofobia na literatura espanhola que rejeitou Gôngora até o
momento em que Ruben Dario, precedido pelos simbolistas franceses o recolocaram
em cena, comparando-o com Mallarmé. Se a pervivência de sua obra pode ser
observada no Parnaso Brasileiro, de Januário da Cunha Barbosa, depois de 136
anos de sua morte, e a partir daí em várias outras antologias, é porque ela
produziu uma força que sustenta Gregório como poeta relevante.
O que Haroldo questiona é a crítica
adepta de uma história monumental, criadora de um cânone imutável. Para ele, a
crítica deve valorizar a diferença, pondo em relevo a descontinuidade da
literatura em relação à história da sociedade. Assim, Haroldo adota um modelo
benjaminiano de tempo, aquele adepto de uma história contelar e anacrônica. Não
seria fortuito lembrar que o poeta estava interessado nas leituras que Lezama
Lima vinha fazendo desde os anos 50 sobre o barroco nas Américas. Para o
escritor cubano o barroco seria uma constante na história da humanidade. Ele
formula o conceito de eras imaginárias na tentativa de desconstruir uma visão
teleológica e linear de tempo, em favor do que ele chamou de eras imaginárias,
conceito que postula a ideia de que obras que foram produzidas em momentos
diversos da humanidade podem, manter elos, afinidades eletivas. Benjamin, a
maneira de Lezama, postulava a história como um torvelinho que revela momentos
de ruptura e transgressão e que entende a tradição não de um modo
essencialista, um grilhão para nos aprisionar.
Segundo Haroldo de Campos, nossa
literatura, articulando-se com o barroco, não teve infância. Não teve origem
simples. Já nasceu adulta, formada no plano dos valores estéticos. Seria, como
definiu Lezama Lima a arte da contra-conquista e não a arte da contra reforma.
A esse processo Oswald de Andrade chamou de devoração antropofágica.
Postular uma outra noção de história,
uma historiografia não linear, não conclusa, nos permite recolocar em cena
Gregório de Matos, fora da lógica teleológica da construção de uma literatura
nacional, tal como tenta Antonio Candido. Assim, poderemos perceber a
pervivência (sobrevivência) de Gregório em vários artistas de uma linhagem
constante do barroco brasileiro. Na Bahia é o caso de Glauber Rocha, Caetano
Veloso e Waly Salomão, Pedro Kilkerry, entre outros.
O que ocorre com a Formação de Candido é
que ela repete o preconceito presente na obra de Silvio Romero e mesmo na
História da Literatura Brasileira, de José Veríssimo. Neste, a figura de Gregório
mais forte que sua obra, tanto é que se refere ao baiano com termos pouco
científicos “malcriado” e “rabugento”. Já Candido considera o barroco como uma
moxinifada sem alma ou músculo. O mesmo preconceito vai sustentar em relação
aos simbolistas, considerados por ele como produtores de uma mera literatura
raio-de-luar. No entanto, Haroldo não dispensa apenas farpas para Candido. No
final do ensaio lembra que o autor da Formação no ensaio Dialética da
Malandragem (1970) propõe um desenho não linearizado, mas mosaical para
Gregório de Matos, reconhecido agora como um dos precursores da comicidade
malandra. Antes de Dialética da Malandragem, no ensaio Literatura de dois Gumes
(1966), reconhece a ação duradoura do barroco entre nós, o que demonstra que o
próprio Candido repensaria a tese da Formação da Literatura Brasileira. O modo
dialético de ler a tradição que aparece em Literatura de dois Gumes preparou
assim a grande virada metodológica que fundamentaria Dialética da Malandragem.
Caminhemos para um fato bastante
curioso. Apesar da filiação de Haroldo em um programa que poderíamos chamar de
benjaminiano, em que o tempo deveria ser pensado dentro de uma outra lógica, é
importante perceber que a metáfora orgânica estaria implícita também na
perspectiva de Haroldo, já que adotar Gregório de Matos, e não a literatura
árcade como legítimo começo, representa uma queda na própria armadilha, pois a
necessidade de um pai fundador permanece. Em Haroldo, ele ainda existe, só que
agora é outro, Gregório de Matos.
Talvez a lição de Derrida não tenha sido
completamente assimilada e o poeta não tenha percebido o jogo das diferenças,
em que a figura de um pai fundador seria uma ilusão. O que faz com que Haroldo,
ao tentar mostrar que o Barroco nos levaria de volta às musas, não consiga sair
da lógica da modernidade.
Walter Benjamin, na Origem do Drama
Barroco Alemão, apresenta uma noção de origem bastante diferente das concepções
tradicionais. Para ele, ela não significa uma gênese: “A origem, apesar de ser
uma categoria totalmente histórica, não tem nada a ver com a gênese. O termo
origem não designa o vir-a-ser daquilo que se origina, e sim algo que emerge do
vir-a-ser e da extinção”. Definir uma gênese seria, então, abandonar o conceito
de origem benjaminiano, caindo na busca de uma arké. Estaríamos, então, diante
de um problema de tempo, e da impossibilidade de reduzi-lo à história.
Impossível pensar no originário sem levar em conta que ele é pautado pela
restauração e pela reprodução, sendo, portanto, incompleto e inacabado. Mas o
esforço de Haroldo parece ter sido bastante válido por recolocar em cena o
barroco.
Para José Veríssimo, no período
colonial, salvo raras exceções, a literatura praticada aqui não fazia senão
imitar inferiormente a literatura portuguesa. Assim, autores como os do
barroco, em sua maioria, eram considerados como poetas medíocres. É justamente
por produzirem uma obra desligada das idéias de nacionalidade e nativismo que
eles foram sequestrados dos estudos literários. No entanto, poderíamos pensar,
na esteira do pensamento do crítico e escritor cubano José Lezama Lima, que os
escritores barrocos estavam pensando a arte de um ponto de vista
pós-nacionalista, para usar uma expressão de Décio Pignatari, mesmo antes do
espaço geográfico latino-americano constituir nações tal como as conhecemos (já escrevi sobre isto aqui).
Lezama Lima consegue desconstruir o binômio nacional cosmopolita ao pensar o
barroco como arte da contra-conquista e não como arte da contra-reforma. Isso
porque esse movimento artístico do século XVII é considerado o “começo genial”
de nossa literatura. Nas suas palavras ele foi uma tomada de consciência, uma
resposta artística do colonizado em relação ao colonizador. Uma espécie de
antropofagia pré-oswaldiana, já que foi por meio da arte que o artista barroco
(colonizado) pôde colonizar esteticamente o colonizador. É caso de Aleijadinho
que mesclou formas barrocas européias com traços artísticos afro-indígenas. É
também o que fez o índio Kondori, na Igreja de San Lorenzo de Potosí, ao
misturar a figura larval de anjos barrocos com entidades mitológicas da cultura
inca. É justamente por pensar a arte além das fronteiras do “nacional” que o
artista barroco conseguiu desenvolver um instinto não menos nacional de
nativismo e nacionalidade.
Nenhum comentário:
Postar um comentário