sábado, 28 de setembro de 2019

João Anzanello Carrascoza e arte da perda


Foto: Luana Luíse

Nesta quarta-feira (25-09), tive o prazer de participar da 38ª Semana Literária do SESC, de União da Vitória, em suas dependências. O evento é promovido todos os anos por essa instituição e acontece simultaneamente em várias cidades do Paraná. Na ocasião, participei de um bate-papo com o escritor João Anzanello Carrascoza, um dos grandes nomes da literatura brasileira contemporânea, tanto no gênero conto como no romance. Com os acadêmicos de Letras (Português-Espanhol), da Unespar, e de Comunicação Social, da UNIUV, pudemos ouvi-lo discorrer sobre seus livros, sua linguagem e concepções literárias.
Carrascoza é um dos autores atuais mais comprometidos com um trabalho sofisticado no âmbito da linguagem, o que engloba um domínio impressionante da palavra, do ritmo do texto, bem como da construção de narradores complexos, de personagens profundos e da elaboração de belas histórias. Reconhecido já pela crítica e amplamente premiado, o autor lançou recentemente o romance “Elegia do Irmão” (2019), pela editora Alfaguara. O livro narra a história de uma despedida. A irmã do narrador é diagnosticada com uma doença terminal, não nomeada. A partir daí, ele passa a refletir sobre a morte e a vida dela com uma pungência que dá ao livro uma dimensão profundamente poética. O romance é sobre o luto previamente anunciado, sendo portanto uma reflexão fúnebre sobre a partida de Mara, mas é acima de tudo uma reflexão sobre a vida da irmã, ou melhor, de sua sobrevida por meio do livro como fato de memória. O tema da perda, aliás, é recorrente na obra de Carrascoza.


Em “Catálogo de Perdas” (SESI-SP Editora, 2017), por exemplo, o autor elabora uma série de pequenos contos a partir da ideia da perda, seja de um objeto, de um ente amado, de uma situação, de algo que se move a partir de uma ruptura e que com ela nos transforma. O livro - inspirado no Museu das Relações Partidas, sediado na Croácia – é composto a partir de um diálogo entre os contos de João e as fotografias de Juliana Carrascoza, sua esposa. Como não lembrar aqui da relação que o escritor Julio Cortázar estabelece entre o gênero conto e a fotografia, experiências que visam a capturar o leitor por meio de uma espécie de nocaute, e não de pontos corridos como faz o romance. Seu Catálogo atinge essa meta por meio de textos velozes e furiosamente delicados.


A já citada presença da perda pode ser percebida também na sua “Trilogia do Adeus” (Alfaguara, 2017), que reúne três livros: “Caderno de Um Ausente”, “Menina escrevendo com o Pai”, e “A Pele da Terra”. São três cadernos cujas histórias se entrelaçam. A primeira apresenta uma espécie de diário que um pai escreve para uma filha, na possibilidade de não vê-la crescer. O livro, de uma beleza singular, lembra por vezes a linguagem literária de Raduan Nassar, em “Lavoura Arcaica”. O pai conta a história da família, o nascimento da filha, apresentando a ela alegrias e tristezas da vida. “Menina escrevendo com o Pai” inverte a narração, já que quem narra agora é a filha para o pai. A jovem Bia revela sua visão de mundo e da relação familiar diante daquele que a gerou. O terceiro livro, por sua vez, apresenta o filho mais velho relatando uma viagem ao lado de seu filho, ou seja, o neto do primeiro pai, do primeiro narrador. Tanto em um caderno como no outro, a questão da perda do tempo, a sua passagem, bem como a perda de entes queridos é tematizada com recorrência. Essa trilogia é uma das grandes referências literárias de nossa prosa contemporânea. Nota-se o quanto as questões familiares movem a escrita de Carrascoza, nunca se transformando ali em um assunto piegas e sem graça.



Toda a escrita de Carrascoza está carregada de uma profunda dimensão poética, como podemos perceber em uma passagem de “Caderno de Um Ausente”, quando o pai revela à filha sobre a dor da vida: “(...) embora viver seja coisa grande, é também a força que lhe contraria, e não há como vencê-la, senão aceitando que a dor desenha em nossa pele, com esmero, um itinerário de pequenos cortes, ora arde um, ora sangra outro, e, às vezes, todos, juntos, nos queimam, em uníssono”. Essa dimensão poética, penso, insere Carrascoza em uma linhagem de grandes escritores da literatura brasileira que integra, por exemplo, o já citado Raduan Nassar, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, João Gilberto Noll, Wilson Bueno, Caio Fernando Abreu, entre outros. Lendo a obra de Carrascoza penso em como a boa literatura se projeta sempre como um lugar de encontro. Poderíamos imaginá-la também como um espaço de pervivência do perdido, do ausente, já que o sujeito está e não está no texto, como alguém que partiu está e não está conosco na memória. Nesse sentido, a literatura propicia um (re)encontro com aquilo que perdemos, ou a possibilidade de lutarmos contra a perda daquilo que amamos, já que escrever é (re)elaborar simbolicamente o vivido, possibilitando um encontro não apenas com o outro, mas também e principalmente consigo próprio.

(Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em 28 de Setembro de 2019)

Nenhum comentário: