sábado, 23 de novembro de 2019

O que os índios têm a dizer?


Apontamentos sobre “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, de Ailton Krenak





Muitos brancos adoram teorizar sobre os índios. Sobre suas necessidades e sobre aquilo de que, aos olhos ocidentais, não necessitam. A terra, por exemplo. Muitos brancos adoram dizer que os índios já têm o suficiente e que devem aprender a viver na cidade, que essa história de “tribo” é coisa de um passado incivilizado e selvagem. Que essa história de demarcação já deu o que tinha que dar. O assunto é mais bem complexo do que parece. Por que não nos permitirmos ouvir dos índios o que eles têm a nos dizer? Comecemos a prestar atenção em suas palavras lendo a obra de um deles.
Há alguns meses, a Companhia das Letras publicou o livro “Ideias para Adiar o Fim do Mundo” (2019), de Ailton Krenak, que reúne três textos desse reconhecido ativista do movimento socioambiental e de defesa dos direitos indígenas. Desde os anos 70, Krenak tem se dedicado com afinco em um trabalho educativo e ambientalista, tendo se destacado na criação da União das Nações Indígenas (UNI), bem como tendo um papel determinante para a conquista do “Capítulo dos Índios”, na Constituição de 1988.
O texto que dá nome ao livro é uma conferência proferida no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no dia 12 de março de 2019. Como a palestra é recente, Krenak consegue abordar questões bastante pertinentes – pela sua própria atualidade - que estão movimentando a política nacional em relação aos direitos indígenas.
O fato da palestra ser em Portugal é bastante sintomático, tendo em vista que as lutas indígenas remontam aos primeiros contatos entre brasileiros e portugueses no século XVI e de certa forma repercutem até hoje nos modos de vida das comunidades originárias.
Conceitos como os de Estados nacionais, humanidade, existência e liberdade são trazidos à tona por meio do pensamento do autor. O texto aponta para a triste realidade de uma humanidade que vai sendo “descolada de uma maneira tão absoluta desse organismo que é a terra”. Distantes do mito do monstro corporativo que ruma em direção ao “progresso” de uma comunidade entusiasmada com shoppings, prédios gigantescos, veículos espaciais, entre outros, alguns núcleos ainda se agarram nessa terra: são caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes, a dita “sub-humanidade”. Para Krenak, a ideia de nós, humanos, “nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos”.
Educados desde sempre para sermos clientes, somos adulados pela sociedade até o ponto de nos tornarmos imbecis, lembra Krenak. Para que estarmos no mundo de uma maneira crítica e consciente se podemos ser consumidores? Para ele, essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra “cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões”.
O pensador aprofunda a questão observando que nosso tempo é especialista em criar ausências. Ausências do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida: “Isso gera uma intolerância muito grande com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de cantar. E está cheio de pequenas constelações de gente espalhada pelo mundo que dança, canta, faz chover”. O tipo de humanidade à qual estamos sendo convocados, segundo o autor, não tolera tanto prazer e fruição de vida. Não tolera inclusive a poesia, poderíamos acrescentar. Pregam com recorrência o fim do mundo, nos convidando ao fracasso alarmante de um amanhã sem esperança e alegria. Sem sonhos. Daí a provocação que inspira o tema: “adiar o fim do mundo é exatamente poder contar sempre mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim”. Como não lembrar aqui das “Mil e uma Noites”, em que Sherazade adia sua morte contando sempre uma nova história para o Sultão. Aliás, ouvir as histórias dos índios é uma forma interessantíssima de conhecê-los. Como gostar do que não se conhece? Aos conhecê-los melhor, talvez nós, os brancos, aprendamos a amá-los na fímbria da amizade, transformando o limite que nos separa no limitar de um contato amoroso. Ao conhecê-los talvez possamos nos dar a imaginar outras possibilidades de vida em sociedade.
Em um dos momentos mais marcantes da conferência, Krenak relembra que há centenas de narrativas de povos que estão vivos, que contam histórias, cantam, viajam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade. Vem daí um de seus ensinamentos mais bonitos e importantes: “Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo, somos parte do todo. Isso talvez tire um pouco da vaidade dessa humanidade que nós pensamos ser, além de diminuir a falta de reverência que temos o tempo todo com as outras companhias que fazem essa viagem cósmica com a gente”.
Essa realidade nos convida a promover uma reserva ecológica desse bem que nos salva. Falo das palavras sábias que vêm do chão mais profundo da terra, respeito pelo semelhante, pelo meio ambiente, por outras formas de ver e pensar a vida. Naturalmente, isso tudo deve estar fora da lógica do mercado, dos interesses pelo minério, do extrativismo sem responsabilidade, tudo aquilo que não é coisa de índio.


Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR),23 de novembro de 2019 - Caio R Bona Moreira

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