sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

“Rua Professor Cleto, 381”, de Rafael Ginane Bezerra, reencontrando o tempo perdido




O passado é uma casa de sempre morar. A infância é lar que infatigavelmente nos habita. A memória é abrigo de muitas janelas. Algumas de frente para o mar, outras para o rio. Todas abertas para o que há de mais íntimo em nós. Nossa vida é casa de três infâncias, aprendi com Manoel de Barros. É por isso que eu habito nela e ela mora perene em mim. A infância é também um jeito de ver. Um jeito de tocar as coisas de novo pela primeira vez. E por isso, para a nossa alegria, é estância da poesia. Pois a poesia é um caminho de nos levar sempre e inevitavelmente de volta para o nosso próprio lar.
A casa do escritor Rafael Ginane Bezerra fica na rua Professor Cleto, 381. Ela é porta de entrada não apenas para o seu passado, mas também para a sua literatura, no âmago do presente e futuro, de uma escrita por vir: “Posso contar sobre a nossa casa amarela, que eu adorava. E ao mesmo tempo estranhava. Mas desfavorável pela disposição das peças. Quando escurecia, a sala grudada à cozinha virava o nosso ponto de convergência. Ali, a mãe preparava o jantar, o pai chegava do trabalho e a gente se sentava à mesa com a televisão ligada. A televisão estava sempre ligada. Por isso, éramos sempre cinco: o pai, a mãe, o irmão, eu e a televisão ligada”. A nossa vida, o livro ensina, é aquilo que acontece entre um jornal e outro, entre uma novela e um filme, entre uma partida de futebol e o Fantástico. E a memória é fantástica porque tem sempre uma boa dose de invenção. Nesse sentido, a literatura permite nos forjarmos como aquilo que somos sem a vergonha de nos lançarmos no jogo da vida como personagens de nós mesmos.


Rafael nasceu em Porto União, morou em União da Vitória e vive em Curitiba desde 1989, onde trabalha como professor na Universidade Federal do Paraná. Em 2019, lançou o livro “Rua Professor Cleto, 381”, pela editora Medusa. A obra apresenta um olhar sobre a infância e a adolescência de um narrador que, assim como o autor, cresceu nas cidades gêmeas do Iguaçu. O ditado popular diz que quem bebeu a água do Iguaçu está fadado a sempre voltar. Voltar para Porto União da Vitória é uma forma do autor voltar para dentro de si mesmo, reencontrando no passado um conjunto de experiências que ajudaram a fazer dele o que ele de fato é. Naturalmente, há nesse retorno o jogo da ficção, no qual o limite entre o vivido e o imaginado se rarefaz para dar lugar àquilo que poderíamos arriscar chamar de autoficção. A própria epígrafe do livro, colhida em Enrique Vila-Matas, aponta para esse caminho: “O meu pai, que outrora acreditou em tantas coisas para terminar desconfiando de todas elas, me deixou uma única e definitiva fé: acreditar em uma ficção, saber que nada existe e que a fabulosa verdade consiste em ser consciente de que se trata de uma ficção. E, sabendo disso, acreditar nela”. Portanto, é inútil circunscrever os limites entre o vivido e o imaginado, entre o real e a ficção, no entanto, as referências à realidade que podem ser encontradas no livro de Rafael me fazem lembrar da minha própria infância e adolescência, vividas nas margens do Iguaçu entre os anos 80 e 90. Nos seus relatos podemos reencontrar o jardim de infância situado atrás da igreja luterana, a “escadaria íngreme com centenas de degraus acompanhados pelas estação da via sacra”, na subida do topo do Morro do Cristo. Os passeios de bicicleta. A grande enchente de 83, que o autor retrata como uma espécie de dilúvio. A casa de dona Ondina, que ficava no pé do Morro da Cruz, o borracheiro Zito e seu amor pelas mulheres sensuais que, exibidas em folhinhas de calendário, estavam destinadas a serem trocadas todos os meses. A banquinha de revistas do Valdemar. O lendário show do Camisa de Vênus em um clube local. O Calçadão. A cabeleireira dona Gerda. O salão do França. A trágica história de Risadinha. Aliás, o conto “Assunção”, no qual é evocada a célebre e bem humorada personagem das ruas de Porto União da Vitória, é um dos mais comoventes do livro, ao retratar a transformação do narrador. O conto “Mullets” também investe no relato de um rito de passagem ao apresentar o momento em que o menino decide ir sozinho até o salão para cortar o cabelo. Destaco também a beleza de relatos como o de “Acabou Chorare”, “O Jogo” e “Despedida”. A leitura de contos como “O Virtuoso” evocou em mim o romance “História do Pranto”, de Alan Pauls, na forma como a infância é tratada.




“Rua Professor Cleto, 381” é obra de alguém que foi embora, mas que está fadado a sempre voltar, até porque assim como a cidade em que moramos nos habita, a nossa história vive para sempre e com força em cada um de nós. Rafael reencontra o tempo perdido por meio de um livro-carta. Quando está indo embora da cidade, para estudar na capital, sua mãe e seu pai pedem, “com os olhos encharcados de passado”, que ele escrevesse quando fosse possível. É o que ele faz no livro quase trinta anos depois.

                         Ilustração do livro História do Pranto, de Alan Pauls

O reencontro com o tempo perdido, no livro de Rafael, é o reencontro com dias felizes: “Houve uma época em que os dias eram felizes por serem predominantemente iguais e na conformidade o tempo passava lento”. Alguém já deve ter escrito em algum lugar que a vida talvez seja aquilo que acontece quando parece não estar acontecendo nada. Mesmo tomando a água do Iguaçu é impossível entrar de novo nesse rio, posto que suas águas são sempre outras, mas em sonho o rio está sempre lá e nos convida a entrar para um mergulho. Se a memória é uma ilha de edição, como sugeriu certa vez um poeta baiano, isso significa que é impossível processá-la fora do viés da ficção. Por outro lado a ficção parece ser não só uma forma de preservá-la em nós, mas também de fazer lembrar o que fomos e o que ainda somos. A literatura de Rafael Ginane Bezerra é esse rio de memória. Encontro ali um pouco do meu próprio rosto refletido em suas águas.


Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, na edição de 22 de fevereiro de 2020.

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