"Eles
tiveram que forjar para si uma arte de viver em tempos de catástrofe para
nascer uma segunda vez e em seguida lutar, com o rosto descoberto, contra o
instinto de morte que está ativo em nossa história." Camus
Em dezembro de 2019,
escrevi neste espaço um balanço das leituras que eu havia feito naquele ano.
Comecei o texto dizendo: “2019 foi um ano fantástico. Daqueles dignos de um
romance em que tudo pode acontecer”. Tratava-se de uma ironia. O fantástico,
ali, era referência ao gênero literário que privilegia o caráter mágico das
histórias, cujos enredos estão concentrados naquilo que, do ponto de vista da
realidade, é inverossímil. Concluí o artigo desejando um ano com notícias
melhores, para que tudo fosse mais feliz e menos fantástico. E veio o 2020. O
que dizer dele? Quem imaginaria um ano mais surreal?
Nem passava pela minha
cabeça e pela de bilhões de seres humanos que o ano seguinte seria praticamente
um filme de terror misturado a uma peça de teatro do absurdo. Com a diferença
de que no mundo real e sua trama atroz milhares de personagens morreriam de verdade.
E o trágico, então, encarnou-se com força no cotidiano do planeta. Como não
lembrar do poema “Impressões do teatro”, de Wislawa Szymborska, publicado em
livro em 1972, que trata de apresentar o mundo real como o palco do verdadeiro
drama. O mais importante da tragédia é o que acontece depois do final da peça. Ou
seja, a tragédia está na vida real e não no teatro.
Impossível não
sentirmos tristeza com tantas perdas e outros sofrimentos relacionados à
pandemia do Corona Vírus pelos quatro cantos do mundo. Difícil encontrar alguém
que não tenha um familiar ou um amigo contaminado pela doença. As recorrentes
aglomerações em nossas cidades ou em qualquer outro lugar de nosso país provam
que uma grande parcela da população está completamente desinformada ou vive
movida por uma falta de escrúpulos imensa. A palavra “gripezinha” tem um peso
enorme que transcende nesse processo questões partidárias, transformando-se num
vocábulo que revela para todos nós o tamanho do descaso do poder público diante
dos fatos. Das supostas oitocentas vítimas já estamos chegando às duzentas mil.
A leitura tem me
ajudado a atravessar estes dias tão tenebrosos. Ela não resolve os problemas do
mundo, e inclusive me faz pensar no quanto sou favorecido em poder gastar meu
tempo também com ela. Faz parte do meu trabalho como professor, além da
distração. Mas certamente ela nos proporciona, além do prazer da evasão – o que
não significa necessariamente uma alienação ou uma apatia -, o exercício da
comoção e da identificação com a dor alheia. Se prestarmos a atenção nas
palavras do pensador indígena Ailton Krenak, perceberemos que estamos todos
doentes, independente de termos sido ou não contaminados com o vírus. O planeta
precisa mudar para não morrer.
A literatura, penso,
tem um papel importante nesse processo, pois ela pode ser considerada como uma
espécie de máquina intersubjetiva que nos permite mergulhar no universo do
outro, identificando-nos com suas dores e alegrias, suas tristezas e seus
prazeres. Impossível não sairmos transformados dessa experiência, encontrando
nas relações pessoais a possibilidade de um contato mais fraterno e humano com
o próximo e com a nossa própria consciência. A pesquisadora francesa Michèle
Petit mostrou em seu livro “A arte de ler ou como resistir à adversidade” (Ed.
34, 2009) a potencialidade da literatura em contribuir para a nossa
sobrevivência em momentos de grande tensão individual e/ou coletiva, fortalecendo
o homem em tempos de grande crise, e funcionando como uma força propulsora de
regeneração. Uma sociedade que passa por um grande trauma pode encontrar na
literatura condições para a reconstrução de si mesma. Tomemos como exemplo os
relatos escritos clandestinamente em campos de concentração, os diários de
confinamento em tempos de peste, os livros lidos por alguém durante um momento
de crise pessoal, depressiva, os poemas escritos como uma válvula de escape
emocional, os livros que transformam nossas vidas, as histórias que os homens
contam ao longo da história para não morrer, a arte que nos cura etc. São
mistérios e belezas da vida que poderíamos investigar em muitas páginas.
Os textos literários
podem nos trazer alegrias imensas, ou mesmo produzir feridas profundas em nós.
Em ambos os casos, concretiza uma experiência positiva, revelando para nós a
vida na sua mais profunda essência. Cito aqui alguns dos livros que estão me
ajudando a atravessar a pandemia com mais força e menos angústia: o segundo
volume da trilogia de Milton Hatoum “O lugar mais sombrio”, chamado “Pontos de
Fuga”, que dá continuidade à trajetória de Martin, um jovem que cresce em
Brasília durante os anos mais duros da ditadura militar. O lindo livro de
memórias, de Fernanda Montenegro, “Prólogo, ato, epílogo”. O poético “Devoção”,
de Patti Smith, no qual ela reflete sobre seu processo criativo. O romance “A glória e seu cortejo de
horrores”, de Fernanda Torres, cujo tema perpassa a vida de um artista de
teatro e televisão dos anos 60 até a atualidade. Poderia citar tantos outros
livros de autores como: Giorgio Agamben, Georges Didi-Huberman, Rafael Ginane
Bezerra, Mariana Mello, José Eurico Tejera Lisboa, Cristiano Moreira, Gonçalo
Tavares, Wislawa Szymborska, Rubens Francisco Lucchetti, Kaká Werá Jecupé,
Eliane Potiguara, Ailton Krenak, Timóteo Tupã Popygua, Cristian Siqueira,
Luisandro Mendes de Souza, Laurent Binet, Luiz Rufino, Dennis Radünz, Sylvio
Back, Christian Prigent, José Castello, Gustave Flaubert, César Aira, Alberto
Pucheu, Alan Pauls, Vinícius de Moraes, Carlito Azevedo, Bertolt Brecht,
Enrique Vila-Matas, Ana Porrúa, Bioy Casares etc. A todas e todos que pude ler
em 2020 agradeço por terem escrito seus livros e me acompanhado nessa jornada.
São obras que me ajudaram a atravessar 2020 com mais fé na vida e com a
esperança de que as mortes e todo sofrimento diminuam até desaparecer, o mais
rápido possível. É o pedido que faço para Jesus neste Natal e Ano Novo. Boas
Festas a todas e todos! Se puderem fiquem em casa! Cuidem-se!
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 12 de dezembro de 2020.
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