segunda-feira, 12 de abril de 2021

Vingança contra a História: Catarse literária em “Chacais em uma noite sem fim”, de Jair da Silva, o Craque Kiko

 


 

Lançada recentemente pela editora Viseu, a novela “Chacais de uma noite sem fim”, de Jair da Silva, revisita um dos capítulos mais tenebrosos da história do Vale do Iguaçu. Jair é o Craque Kiko, conhecido radialista que atua no jornalismo esportivo local, e que tem nos últimos anos publicado obras importantes sobre a memória do futebol nas cidades de Porto União (SC) e União da Vitória (PR). O escritor, que é colunista do jornal Caiçara, tem agora, para a satisfação dos leitores, exercitado sua pena nos textos de ficção.

O autor inicia o livro contextualizando social e historicamente a trágica trama que vitimou uma jovem em um sórdido crime premeditado por vários homens da sociedade local nos anos 40. Ao longo do enredo, um ambiente de tensão vai sendo criado e o leitor vai entrando em um túnel do tempo que se torna mais assustador quando percebemos que o atroz delito de fato ocorreu. Em uma das cenas mais inusitadas, o capeta, “usando óculos escuros”, assiste a uma briga em um bar local, procurando possíveis aliados para o ato vil que planejava. Como os envolvidos, um padre, um ateu, um chefe da maçonaria e um rabino fizeram as pazes, mostrando que tinham bom coração, o demônio foi “assediar e tentar arrebanhar as almas de alguns tubarões bacanas da sociedade. Foi quando, de fato, conseguiu o seu intento”.

Como a literatura trabalha no horizonte do possível, daquilo que poderia ter acontecido, e não com o que de fato aconteceu, um autor tem sempre a possibilidade de se relacionar com a realidade de uma maneira criativa e lúdica. Isso significa que uma narrativa literária pode manejar com muita liberdade os elementos históricos com os quais venha possivelmente a trabalhar em um enredo. No livro em questão, já no prólogo, o escritor aponta para um jogo que de certa forma se estenderá por toda a trama: “A narrativa descreve fatos de um sequestro e estupro, seguido de morte, que resultou em uma queima de arquivo e originou uma vingança sem precedentes devido a um amor platônico. Ainda no desfecho da trama, um pai e um filho também vão para o além. Uma história, fruto da imaginação ou baseada em fatos reais? Leia, pois, se baseada em fatos reais, poderá ter sido em sua terra”. Essa margem de indecidibilidade entre fato e ficção, presente por exemplo, em metaficções historiográficas, é levada adiante no livro a ponto de Kiko transformar propositalmente a realidade em ficção, modificando a história tal como a conhecemos, dando ênfase a alguns episódios, obliterando ou inventando outros, criando novos personagens e mudando o nome daqueles que teriam uma existência fora da literatura.    


Jair da Silva, o Craque Kiko


A capacidade de transformar a história, profanando-a, ou seja, fazendo um novo uso daquilo que tradicionalmente era considerado sagrado, portanto interdito, é uma das possibilidades mais interessantes que a arte tem de forjar um novo olhar sobre a própria história. Onde se lia a frase: “não mexa na história, porque ela é sagrada”, leia-se agora a pergunta: “qual é a verdade da história?” ou ainda “toda história não tem também a sua história?”. Se a própria historiografia se constitui como uma ficção – e o trabalho do historiador não está completamente afastado da atividade do escritor – imaginemos a liberdade da literatura em inscrever novos signos naquilo que chamamos de história. Só o fato de escolher registrar certos acontecimentos e não outros, ou de contar os acontecimentos de uma forma e não de outra, faz da história uma experiência relativamente ficcional. Ou seja, os referentes da história – que se perpetua por meio de textos -, estão condicionados ao efeito de real que encontramos na literatura, ou seja, na ficção.    

Sobre a subversão da história, este é um recurso que vemos com frequência, por exemplo, no cinema. No filme “Bastardos Inglórios”, de Tarantino, Hitler é assassinado. A obra nos faz perguntar o que teria sido do Reich e da Segunda Guerra Mundial se Hitler tivesse sido impedido antes de promover sua barbárie. A ficção trabalha com o verossímil. O conceito de verossimilhança, teorizado originalmente por Aristóteles, em sua “Arte Poética”, diz respeito à capacidade que a arte tem de representar não o que de fato aconteceu, mas o que poderia ter acontecido. Isto faz da literatura um objeto que mantém com a realidade histórica uma relação bastante singular. Ela nasce da realidade, mas curiosamente outra realidade nasce com ela. E esta é uma mágica. Escrevo tudo isso para chegar em um ponto específico de “Chacais em uma noite sem fim”, em que a narrativa subverte a história tradicional promovendo, como em “Bastardos Inglórios”, uma vingança contra os antagonistas, neste caso, os algozes que promoveram o crime bárbaro contra a jovem que na novela leva o nome de Mafalda. Na realidade, sabemos que o crime que inspirou o livro ficou impune. Na literatura não. E mais não digo para não dar spoiler. Observo apenas que o livro exorciza a dor da vítima por meio de uma vingança da literatura contra a história, da ficção contra os fatos. Nesse sentido, a obra do Craque Kiko, mesmo que de forma inconsciente, pensa a narrativa como um instrumento que maneja as imagens inspiradas no discurso histórico para promover uma espécie de catarse literária ao forjar uma vingança contra os responsáveis pela maldade. Foi a minha catarse também ao ler o livro.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), em abril de 2021

 

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