sexta-feira, 11 de junho de 2021

A poesia grávida de Mariana Ianelli: Todas as casas dentro da casa

 


À medida que leio os poemas e as crônicas de Mariana Ianelli, vêm-me à lembrança certas imagens do “Sermão de Nossa Senhora do Ó”, que Padre Vieira pregou em 1640, na Igreja da Ajuda, em Salvador. No texto, o prosador barroco observa que a Terra é um círculo que está contido em outro, o das esferas celestes. Estas estão contidas em Deus que, por sua vez, está contido no ventre de Maria, que o abraçou dando-lhe circunferência e a dimensão de sua divindade. Nossa Senhora está contida na Terra. E o ciclo recomeça. O círculo não para. O ventre de Maria, então, é esse imenso maior que o imenso, ou seja, o imensíssimo. Um círculo vai dentro de outro e Deus, por não ter imagem que o represente, é figurado com um O. O mesmo Ó formado pelo ventre grávido de sua mãe. O mesmo “Oh!” que é a interjeição do desejo da expectação ou da dor. A eternidade, por não ter uma imagem específica, é representada também pelo círculo, figura geométrica perfeita. O infinito é um Ó. O tempo distendido – como aquele que nascendo da pedra jogada no lago vai formando seus Ós -, é a própria fulguração do eterno. O desejo distende também o tempo, este que, por sua vez, faz crescer o desejo à medida que aumenta. Quanta angústia de espera mora no istmo de um instante? O ventre é um “O que compreendeu o imenso, assim como o O dos desejos da Senhora na expectação do parto foi outro círculo que compreendeu o eterno”, escreveu Padre Vieira.

Eternidade e desejo são duas coisas que se equivalem, são os dois Ós mágicos da vida. Cada círculo é a morada de um outro: A Terra, o Céu, o Deus, a Comunhão, e o Sagrado ventre feminino. São como as mil casas dentro da casa que prefiguram a obra de Mariana Ianelli. Na epígrafe de seu “Manuscrito do Fogo” (Ardotempo, 2019), podem ser encontrados os versos de Marize Castro: “Mil casas dentro desta casa / Cada uma com seu anátema / Oráculo / Olor.



Descubro em cada poema de Mariana algo singular e ao mesmo tempo múltiplo, algo particular e um estranho elo que faz cada texto corresponder aos outros. A literatura é esse eixo de tantas ligações. E quantas casas vão sendo construídas nesses poemas? Aos poucos, durante a leitura, vão surgindo estrelas – que ainda brilham depois de mortas, ou que às vezes brilham mais porque estão a morrer. São elas: as famílias lendárias, a mãe, a outra mãe, o sangue conjugado dos irmãos, o retorno para casa, os despojos do tempo, a lembrança da casa demolida, a mitologia da genealogia realizando a história de seus nomes, os livros póstumos, a cinza que é rastro e memória, os vestígios de alguma coisa, as cicatrizes, as ruínas, os diálogos com António Vieira, o filho, o filho pródigo, o pai, a casa que ainda pode ser amada, a Pietà, a descendência, a casa morta, o tempo perdido ou devorado, o tempo reencontrado,  o tempo cindido, os ossos da casa, a casa deserta, o futuro repleto de antigamentes. São muitos os círculos, todos morando dentro de um outro. Todos contidos no ventre da poesia de Mariana Ianelli. Uma casa dentro de outra, todas dentro dela. E ela, a poeta, onde? Dentro dela e da casa, é claro. Maria, Mariana e seus Ós. Do hebraico e do sânscrito, o nome de Maria, “senhora soberana”, dá origem à Mariana. Ana, do Hannah, “cheia de graça”. Mariana, “mulher pura e graciosa”, aquela que vem de Maria. A poesia de Mariana vive no ventre da família.  

Não se trata aqui – com Vieira - de sacralizarmos ou canonizarmos a obra da autora, longe disso. O anátema que figura em sua epígrafe, aliás, é a própria imagem da excomunhão. Contentamo-nos, no entanto, em apontar para uma dimensão religiosa que intuo nela ao ler seus livros. Viver a vida ou escrever religiosamente transcende qualquer ideia de religião ou instituição devotada à prática da fé. O religioso, em Mariana Ianelli, está na vida, no aqui e no agora, cheios de antigamente, mas também grávidos do porvir. E assim a escrita vai se constituindo como uma espécie de oração. Daí sua obra evocar em mim certos textos de Cecília Meireles, Hilda Hilst, Herberto Hélder, Clarice Lispector, Raduan Nassar, Caio Fernando Abreu, Wilson Bueno, ou a música de Erik Satie, Debussy, Brahms ou Bach. Não a comparo com eles, apenas celebro o que no meu ímpeto de leitor se agrega. Aliás, falando de tantos Ós, lembro de Pitágoras a defender que as esferas celestes tocavam uma música universal. É a base de uma verdade imemorial que vemos na poesia com suas infinitas e indefinidas correspondências. Mariana pensa por imagens, a poesia é seu jardim. 



Escrevo tudo isso para chegar a uma outra casa, seu livro de crônicas “Dia de Amar a Casa” (Ardotempo, 2020), que reúne textos que vão de 2017 a 2020, no estopim da pandemia. Enquanto lia, fiquei pensando: “E se a casa nos amasse como nós amamos a casa, como seria?”. A casa é esse livro que guarda tanta coisa e está também dentro de Mariana. E essa morada é religiosamente imensíssima. A casa dela tem seus santos, seus rituais, seus terços, seus louvores cotidianos. E ela faz da palavra poética sua eminente comunhão. Mariana é um oratório. E comemoro a descoberta de suas crônicas como uma das coisas bonitas que me aconteceram nesses dias tão tenebrosos e cruéis. Redescubro, aliás, no seu texto, aquilo que Valdir Prigol escreveu sobre a vocação do gênero: “a transformação do cotidiano em matéria potencialmente lírica”.    

A escrita de Mariana instaura em minha leitura a crise do comentário. É daquelas obras rebeldes que não se entregam fáceis aos caprichos de um comentador. E talvez seja também por isso que ela me pareça, desde já, tão fascinante. Eu leio, releio, sinto-a, e isso me basta. Não sei se quero entendê-la. Não sei resumi-la, ou criticá-la. Quero apenas conversar, vislumbrar a rosa a ser colhida em cada frase: A pele da pétala de um hibisco, o amor pela nuca ensolarada de uma amiga, o azul calmo do dia em que a avó morreu, o olhar do amante em uma fotografia de Doisneau, o miniconto de um milagre real encasulado em uma Nossa Senhora do Ó de Sabará, uma palavra-guimba mostrando que nenhum fogo é fútil, uma mulher que era uma multidão, um amor de repente deitando âncora na realidade, os pincéis escalavrados do avô, a lembrança que é um cavalo-marinho, ou uma cama no quintal debaixo das buganvílias.

Mariana aponta em uma das crônicas para a secreta claridade da avó nua em um quadro pintado pelo avô, em 1948. Penso que essa crônica me ajuda a compreender um pouco mais a obra da escritora. No retrato pictórico, a avó aparece nua, virada de costas, no primeiro plano. Vemos o torso de uma modelo despida, cujas mãos parecem esconder o sexo oculto ao espectador. Há uma certa timidez personificada pelo íntimo pudor dessas mãos sobre a genitália. É um gesto quase inútil, porque ela está ali inteira, e sua imagem entregue à expressão do pintor, entregue principalmente aos nossos olhos. Quanto mais ela se esconde, mais ela se revela. Vemo-la, ali, inteira. Com candura, Mariana toca a imagem da avó, prometendo-lhe cuidado e mão leve. É assim sua escritura. Uma mão que toca as coisas com delicadeza e afeto, ocultando e revelando num jogo de mostrar e esconder a beleza da casa, da família, dos objetos, da infância, das palavras, das alegrias, mas também angústia das dores, da indignação, da insatisfação, da saudade, da guerra, do desterro em sua própria terra. Mariana, seguindo certos passos (ou traços) do avô, compõe o texto como quem mistura tintas, esfumando, assim, com sábia imaginação, seus tons e luz e sombra, fazendo da poesia uma legítima aleluia. É com essa intensidade que ela mergulha também no presente, com os olhos abertos e em alerta aos dilemas do nosso tempo. É quando seus quadros capturam e pensam também o horror, mas nunca abrindo mão da delicadeza. Ela está também lá, na indignação. É um gesto preciso e precioso.


Caio Ricardo Bona Moreira

Imagens: Edições Ardotempo

Um comentário:

Mariana Ianelli disse...

Caio...que percurso tão intenso e sem reservas! Padre Vieira, estrelas, moradas, nomes. Como me comove o fio das suas iluminadas associações! E, depois de ir longe, muito longe, bem ali no coração das coisas, a vontade de "apenas conversar". O que existe aí é muito mais que o bastante: é o que verdadeiramente importa. Esses olhos que veem. Essa aleluia. Muito obrigada...