domingo, 28 de dezembro de 2008

VIDA QUE INSISTE:
CONSIDERAÇÕES SOBRE “O VENTO NOS LEVARÁ”, DE ABBAS KIAROSTAMI
.
O vento nos levará a todos (perdoem-me a silepse). Pode acreditar, meu amigo. A não ser que encarcerem nossas cinzas em um esquife lacrado, o que seria lastimoso. Se tudo existe para acabar em vento e em cine, deveríamos prestar mais atenção em Abbas Kiarostami. Contar uma história ou fazer um filme pode ser uma forma de vencer a morte. É o que pensei quando assisti ao Gosto de Cereja e O vento nos levará, desse brilhante cineasta iraniano. Uma das cenas que mais gostei de Bād mā rā khāhad bord (O vento nos levará) é quando o engenheiro, responsável por fazer uma filmagem numa aldeia do Irã, vai até uma das casas do vilarejo em busca de leite. Desce até o porão, um estábulo subterrâneo, e encontra uma jovem disposta a tirar para ele leite de uma cabra da família. O homem começa a declamar um poema: "Se vier à minha casa /oh, bom senhor,/traga a lâmpada/e uma janela pela qual/eu possa ver/a multidão na rua feliz." A moça não entende o instante poético, quase senil, por excelência. A poesia perpassa toda a aldeia, mas os moradores nem percebem. O filme dá uma dimensão poética a essa ausência.
Sim, o cinema de Kiarostami é mesmo poético. Mas essa poesia não está apenas no poema que o personagem declama no porão da casa. Ela está na árvore solitária que está fincada na paisagem quase desprovida de vegetação. Ela está no passeio de motocicleta preenchido com um fundo natural que faz lembrar “Corvos no Trigal”, de Van Gogh. Está no gesto do menino que guia o engenheiro e sua equipe pela comunidade que começa a fazer parte da vida do forasteiro. Ainda na cena do leite o homem pergunta para a jovem se ela conhece Forough. Ela diz que sim, é a filha de Gohar. Não, ele se refere à Forough Farrokhzad, uma poeta iraniana. Poeta que por sinal inspirou o filme de Kiarostami. O próprio título do filme alude ao poema “O vento nos levará”, que é também é declamado pelo engenheiro na cena, e cuja beleza me impele a transcrevê-lo:

Em minha noite, tão breve, oh pena
o vento vai de encontro às folhas
minha tão breve noite completa-se de atroz angústia
ouve! escutas o sopro das trevas?
dessa felicidade sinto-me estranho.
o desespero já me é costume
ouve! escutas o sopro das trevas?
ali, na noite, algo se passaa lua é vermelha e de angústias
e presas a esse teto,
que ameaça desabar a cada instanteas nuvens,
tal qual turba de choradeiras, esperam o deitar das chuvas,
um momento e nada mais.
por sob a janela, é a noite que treme e a terra a não mais girar
por sobre a janela, um estranho
inquieta-se a mim e a ti
e tu, verdejante, estendes tuas mãos – essas lembranças ardentes –
sobre minhas mãos apaixonadas e confias teus lábios,
cheios que são do calor da vida,
às carícias dos meus lábios apaixonados
o vento nos levará! o vento nos levará!

tradução da versão francesa(original em persa) por Ruy Gardnier


A menina parece indiferente à declamação do engenheiro. Esse desprendimento, que dá o tom de “O vento nos levará”, marca presença em quase todas as cenas do filme. Se me perguntassem sobre o que é o filme, eu diria: sobre a vida. Poderiam intelectualizar com mil e uma e outras colocações: “Não, é um filme sobre o próprio cinema”, etc e tal. Tudo bem, pode pensar o que quiser, uma leitura fascista é a pior das leituras. Vamos por partes, rebobinemos a fita. O engenheiro é incumbido de visitar uma pequena aldeia. Lá, deve aguardar que uma velha morra e filmar o ritual fúnebre que a comunidade ainda mantém no seio de uma secular tradição e nas lágrimas de dedicadas carpideiras. O caso já é mote para Kiarostami desenvolver uma reflexão antropológica sobre as tradições de comunidades periféricas, bem como a relação entre periferia e centro.
Mas poderíamos ir além, mesmo que esse além signifique somente um mergulho no próprio filme. O fato é ocultado da comunidade. O engenheiro conta para seu guia, um jovem iraniano, que a equipe estaria ali para escavar destroços – um grupo arqueológico, por que não? – Cavar a morte significa cavar uma ruína. Mas o inusitado acontece. Aliás, o cinema de Kiarostami é repleto de inusitado, o que não se espera e sempre espreita os bons roteiros cinematográficos. O inusitado é que a morte não acontece, o que impacienta toda a equipe, com exceção do engenheiro, que parece ter aprendido a conviver com a vida e com a aldeia. Acredito que poderíamos “ler” o filme a partir da leitura do poema de Forough Farrokhzad. Em meio ao sopro das trevas, o calor da vida. O cinema como aquele estranho que inquieta-se entre mim e ti. Depois desse contato, um outro que se precipita numa lembrança ardente sobre mãos apaixonadas: em Kiarostami, somos reféns de uma poesia que nos chega estranha e, ao passo que acontece, nos incendeia. São poéticas as palavras? Talvez. Até a morte pode ser poética quando está a serviço da vida.
Por isso um título tão sugestivo: “O vento nos levará”, como leva o osso que o engenheiro mergulha sem sentido no pequeno riacho. Acho que o poema é uma síntese do filme, assim como o filme pode ser uma síntese do poema: É a vida que insiste em sobreviver, como as imagens do cinema de Kiarostami. Perdoem-me o discurso apaixonado. É que, mesmo hesitando, só consigo falar sobre as coisas que amo.
c.moreira

Um comentário:

Eu sou a Fabiana Carneiro, disse...

Uau!!! Se você fosse pescador, o teu peixe estaria vendido! Ou melhor, esgotado!! Ah, vou ver! Ou melhor: vou ler!