Curioso
observar que a obsessão pelo duplo percorre não apenas os poemas de Sebastião
Uchoa Leite, mas também os seus ensaios, reunidos pela editora da UFRJ e pela
editora 34, em 1995, no livro Jogos e
Enganos. No ensaio "O paradoxo da tradução poética", o
poeta-ensaísta observa que tal como o ator que é outro sendo ele mesmo, o
"tradutor cria um duplo do texto que é outro e tem de ser o mesmo":
"Em alguns casos, o do jazz ou de algumas formas de música indiana, por exemplo, a função do intérprete confunde-se com a da própria criação original dos temas, porque se opera com a improvisação. É nesses casos, legítima criação original, embora dependente de uma produção anterior, a dos temas. (...) No caso da tradução enquanto interpretação, cada tradução é uma variação de um mesmo objeto, não se conhecendo traduções exatamente iguais. Coloca-se então o paradoxo da tradução ser ao mesmo tempo um duplo do texto traduzido e ao mesmo tempo um texto totalmente novo. (...) Há três séculos já, quis Diderot destruir o conceito ilusionista de interpretação no seu Paradoxo do Comediante, no qual se defende a tese de que o ator não deve confundir-se com o personagem, mas vê-lo de fora, consciente do artifício da interpretação. Diderot defendia, de fato, a tese moderna do distanciamento do intérprete em relação ao personagem. O paradoxo consistia em ser um outro permanecendo em si mesmo. Teoria que corresponde ao sistema de explicitação do artifício, presente em grande parte da arte moderna, tal como ocorreu nas análises literárias do formalismo russo e nas teses brechtianas do teatro épico, por exemplo" (1995).
"Em alguns casos, o do jazz ou de algumas formas de música indiana, por exemplo, a função do intérprete confunde-se com a da própria criação original dos temas, porque se opera com a improvisação. É nesses casos, legítima criação original, embora dependente de uma produção anterior, a dos temas. (...) No caso da tradução enquanto interpretação, cada tradução é uma variação de um mesmo objeto, não se conhecendo traduções exatamente iguais. Coloca-se então o paradoxo da tradução ser ao mesmo tempo um duplo do texto traduzido e ao mesmo tempo um texto totalmente novo. (...) Há três séculos já, quis Diderot destruir o conceito ilusionista de interpretação no seu Paradoxo do Comediante, no qual se defende a tese de que o ator não deve confundir-se com o personagem, mas vê-lo de fora, consciente do artifício da interpretação. Diderot defendia, de fato, a tese moderna do distanciamento do intérprete em relação ao personagem. O paradoxo consistia em ser um outro permanecendo em si mesmo. Teoria que corresponde ao sistema de explicitação do artifício, presente em grande parte da arte moderna, tal como ocorreu nas análises literárias do formalismo russo e nas teses brechtianas do teatro épico, por exemplo" (1995).
Aliás,
a tradução como produção do duplo, parece o fio que Cesar Aira enrola e
desenrola na novela El Congreso de Literatura, que conta a aventura de um Sábio
Louco, escritor-engenheiro que se dedica à produção de clones. Em um congresso literário na cidade de Mérida, na Venezuela, ele intenta clonar o
escritor Carlos Fuentes, com o objetivo de dominar o mundo com um exército de
Fuentes. Um acaso leva o fato ao desastre. Para Arturo Carrera, trata-se de uma
fábula central, que alude a uma multiplicidade de traduções: Traduções que
permitem imaginar a literatura como uma fábrica de traduções" (in AIRA,
2007). A tradução, assim como a clonagem, é monstruosa por excelência, e
permite a possibilidade de ser outro permanecendo si mesmo. Parece-me que é o
que Aira consegue fazer com destreza ao clonar um especialista em duplos.
Em
um outro ensaio do mesmo livro, "A escada, o espelho e as sombras, ou o
jogo da maldade", do livro Jogos e
Enganos, Uchoa Leite potencializa a figura do duplo, discutindo sobre mal,
a partir da análise de vários filmes dos anos 40 e 50. Para ele, hoje, há uma
espécie de hiper-realidade contemporânea nos filmes que se contrapõe ao cinema
dos anos 40, 50 e início dos 60, em que a sugestão/insinuação tinham um peso
maior, e essas características eram ainda mais acentuadas por meio de
contrastes de luz e sombra da estética em preto & branco. Uma insinuação
incitada pelas sombras, pela presença de espelhos e pelas escadas, que
provocariam uma experiência de horror e suspense superior ao cinema que lhe é
contemporâneo. É o caso do filme A
Malvada, de Joseph L. Mankiewicz, no qual encontramos um espelho múltiplo
que reflete um labirinto de personagens em vários ângulos. Quando Phoebe, uma
personagem, decide tomar o lugar de outra, Eve, sua imagem se multiplica no
espelho em que ela se mira: "Trata-se da projeção de uma proliferação
indefinida de Phoebes/Eves para um futuro indeterminado. O filme sai da esfera
específica do estudo particularizado de uma individualidade narcísica que se
contrapõe a outra quando Eve se contrapõe a Margo, e passa para a esfera do
comportamento social sob o ângulo da norma"(1995, p. 149). A relação das
duas personagens é, assim, um jogo especular. Em, Com maldade na alma, de Robert Aldrich, no qual em uma sequência
misteriosa, Miriam, uma personagem se move pela casa entre sombras e reflexos:
"Seus movimentos são duplicados pela sua própria sombra" (1995, p.
151). Outros filmes e suas cenas de
duplos são analisados por Uchoa Leite como Estranha
compulsão, de Richard Fleicher, O
Criado, de Joseph Losey, Os inocentes,
de Jack Clayton e, curiosamente, Dead of
Night. Para o ensaísta, há uma frequente ligação entre a imagem especular e
o sobrenatural que permeia a ficção de todos os tempos, inclusive no filme de
Alberto Cavalcanti, em que um "espelho maldito" "mostra sempre
um ambiente diverso do que aquele em que está o personagem que o
contempla"(1995, p. 161). Para Uchoa Leite, "sombras equivale a dizer
meia-luz, meio realidade-meio irrealidade, ambiguidade ambiental, realidade
fantásmica, tudo que favorece uma visão do real através de uma deformação ou
simulação" (1995, p. 161). Uma prefiguração cinematográfica desse mal
produzido pelo duplo aparece, por exemplo, no filme B, A Aldeia dos Amaldiçoados, lançado quinze anos depois de Dead of Night. A película é rememorada por Cesar
Aira no texto "A Brick Wall", publicado no livro Relatos Reunidos
(2013). O relato reconstitui sua infância no cinema de Pringles. O filme trata de
um povoado que é invadido por uma força desconhecida. As mulheres,
misteriosamente, depois de dormirem acordam grávidas e nove meses depois dão à
luz à crianças muito parecidas, loiras, frias, que se vestem muito formalmente
e que com o passar dos anos demonstram terríveis poderes. Segundo Aira, esse
filme, com sua proliferação de duplos, teve um papel fundamental para perceber
uma super-realidade que lhe mostrava ser a realidade talvez mais difusa,
desordenada, e desprovida da "rara elegância de concisão que era o segredo
do cinema"(2013).
São
imagens que pleiteiam uma relação entre o eu e o outro. No entanto, é uma
relação cindida, que não se completa. Mediada pela linguagem, "ela
lembrará ao sujeito que nenhuma revelação ou imagem de completude será
possível, porque ele continuará sendo um estranho por dentro e por fora"
(DASSIE, 2010, p. 26). E em Dead of Night, o que isso produz? Estranhamento, terror
e suspense. Em momentos de grande tensão, no filme, o duplo aparece. Aliás, a
poeta e crítica argentina María Negroni, em Galería Fantástica, ao analisar a
literatura fantástica na América Latina como uma sobrevivência da literatura
gótica, observará que em obras de Carlos Fuentes, Alejandra Pizarnik, Bioy
Casares e Felisberto Hernandez, o veículo para a exposição das fronteiras
difusas entre "o sonho e a realidade, entre a arte e a vida, é o
duplo" (2009). Daí a presença em seu estudo dos jogos filosóficos
compostos por réplicas, espelhos, estátuas, autômatos, bonecas, uma
parafernália - dispositivo barroco - que em Carlos Fuentes, por exemplo, à
maneira de Wilde, em O Retrato de Dorian
Gray, faz lembrar o estilo dos carnavais mexicanos de morte, "capaz de
teatralizar, em um espaço de revelação e náusea, um duelo impossível"(2009).
Em um outro livro de María Negroni vemos com recorrência figuras do duplo,
sejam nas miniaturas e mapas, ou mesmo nas bonecas e manequins, estes últimos
elementos importantes para a poética surrealista. A autora lembra que a
sagacidade de Breton foi dupla: comparou os manequins às ruínas românticas e
viu neles, simultaneamente, uma figura pulsante da modernidade. Nesse contexto,
não me parece fortuita e relação entre o cinema de Alberto Cavalcanti e o
surrealismo. O filme Quando Fala o
Coração, de Hitchcock, repleto de duplos, com um interesse psicanalítico,
teve sua cena de sonho realizada por Salvador Dalí, a convite do diretor.
Curiosamente, Dead ofi Night e Quando fala o coração foram filmados no
mesmo ano.
Outras
questões: No espetáculo da ventriloquia, quem controla a voz de quem? Que
experiência é essa que está no espetáculo/cinema de Alberto Cavalcanti? Se há
um jogo entre um eu e um outro, entre a proximidade e a distância, entre o
artista e o boneco, entre o real do espelho e o espelho do real, entre o comum
e o estranho, o conflito é o eixo sob o qual estão postas as relações fora dos
lugares-comuns. Se na figura do duplo não há uma plena consciência de si mesmo,
nem tampouco o seu domínio, que abertura é essa que torna estranho um objeto
por dentro e por fora? Como ler essa estranheza? Como estranhá-la ainda mais?
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