domingo, 2 de fevereiro de 2014

Tableau para Eduardo Coutinho


Certa vez, ao escrever um tableau para Wilson Bueno (como fiz para Valêncio Xavier), confessei a minha dificuldade em escrever sobre aquilo que amo. No mesmo texto perguntara:  "Por que sinto tanta necessidade de escrever sobre as pessoas que amo justamente quando elas vão embora?" e "Por que adio tanto escrever sobre aquilo que mais amo?" É a mesma reflexão que faço hoje ao saber da trágica morte de Eduardo Coutinho. Trágica como foi a de Wilson Bueno. Ambos assassinados brutalmente com facadas. O corpo é fraco. Foi-se o nosso maior documentarista, um dos maiores cineastas que o Brasil produziu.

Sempre imaginei e temi que Coutinho morresse devido ao uso excessivo do tabaco. Fumante inveterado que era, acabaria sendo assim. É comum vê-lo fumando nos filmes e nas entrevistas. Escrevo este tableau para o cineasta como se fumasse em sua homenagem seu último cigarro.

Sempre achei Coutinho uma figura demasiado humana. Simples, humilde, talentosa ao revelar o talento de qualquer pessoa, ou seja, de uma pessoa comum. Quando o via em entrevistas, no entanto, o descobria circunspecto, tartamudo, quase triste, um pouco sisudo. Talvez o motivo daquela melancolia fosse também o problema mental de seu filho que tragicamente viria a assassiná-lo (Pelo menos é o que dizem os jornais).
Mais um cigarro. O próximo é sempre o último. Fico pensando como Eduardo (mais familiar) fumou seu último cigarro. Onde? O que pensava enquanto fumava sem sabê-lo que seria o último. Se o soubesse seria o melhor e o pior dos cigarros? Que marca fumava? Quantos maços por dia? Fiquei sabendo hoje que o garoto propaganda do Marlboro, o caubói Eric Lawson, morreu de câncer no pulmão dia 10 de janeiro (a morte só foi divulgada essa semana).

Cheguei a me referir algumas vezes neste blog a Eduardo Coutinho, impressionado que estava pelo documentarismo brasileiro contemporâneo. Tão impressionado continuo. Toquei em seu nome algumas vezes, comentei brevemente "Jogo de Cena", "O fim e o princípio", mas nunca dediquei a seus filmes nenhum comentário mais profundo, o que cada um deles merecia. Por que não escrevi?

No cineclube que criei juntamente com o professor Luisandro Mendes de Sousa, na FAFIUV (UNESPAR), chegamos a projetar e discutir "Cabra Marcado para Morrer". A velha questão: encarar a esfinge ou continuar adiando escrever sobre aquilo que mais amo, que mais me encanta? Fumar?
Assisti a quase todos os filmes de Coutinho. Desejei escrever sobre cada um deles: sobre o acaso e a poesia de "O fim e o princípio" e "Edifício Master". Sobre a magia e encantamento de "Santo Forte". Sobre a inteligência e inventividade de "Jogo de Cena" e "Cabra Marcado Para Morrer", capazes de problematizar os próprios limites do gênero cinematográfico no qual investiam suas forças. Sobre as delícias de "Babilônia 2000" (filmado no mesmo dia em que "O primeiro dia", de Walter Salles, irmão de João Moreira Salles, um discípulo e amigo fiel de Coutinho). Sobre a política de "Peões" (filmado no mesmo mês que "Entreatos", de João Moreira Salles - coincidências?). "Moscou"me inspirou a tentar filmar "amadoristicamente" algo parecido, os bastidores da montagem de uma peça teatral, o que nunca fiz. As coisas que nunca fizemos ou que nunca terminamos também são belas.  

Há cenas lindas em cada um dos filmes de Coutinho. Divido-as em duas categorias: aquelas em que brasileiros comuns se revelam extraordinariamente  poéticos, transformando-se em personagens incríveis, e aquelas em que, sutilmente, encontramos a presença "física" do diretor interagindo com eles - digo física porque mentalmente a presença de Coutinho está no filme todo, em todos eles. Física porque o diretor eventualmente interroga, interagindo com as personagens, não para dirigi-las mas para conduzi-las, não para forjar um efeito, mas para extrair aquilo que está em potência nos seres que estão sendo filmados. Naturalmente, o natural é sempre artifício. Coutinho sabe que a ficção é o alimento desse jogo de cena. No entanto, sabe também que aquelas pessoas e aquelas histórias existem. Como transformá-las em cinema? onde o real? onde a ficção? É comum vê-lo aceitando cafezinhos das personagens, nas casas humildes que visitava, ficando assim mais íntimo daqueles brasileiros e brasileiras, conquistando aquilo que seria fundamental para sua obra de arte. É comum também vê-lo demonstrar interesse pelas coisas simples apontadas pelos "entrevistados". Coutinho sabia demonstrá-lo - e, de fato, o tinha - valorizando pequenos detalhes que circundavam a(s) vida(s) daquelas pessoas: um bicho de estimação, uma foto, uma roupa, um detalhe, uma saudade. Fumando quase sempre.

Em seus filmes, geralmente, o que mais me encanta são as coisas simples, um homem cantando Frank Sinatra em "Edifício Master", uma mulher cantando em "Babilônia 2000", Janis Joplin? Atores se emocionando em "Moscou" e o diretor confessando seu quase fracasso em filmá-lo. As mulheres (atrizes ou não - todas talvez sejam um pouco) incríveis de "Jogo de Cena", surpresas e revelações aos espectadores. Muita coisa poderia escrever aqui, mas prefiro rever os filmes.

Mais um cigarro. O que mais me impressionava no cineasta era a capacidade de ser inventivo. Eu sempre esperava com muita curiosidade o próximo filme. Isso porque sabia que em sua casa, na rua, na praça, no escritório, Coutinho estava tramando uma próxima película, inventando um próximo lance, (re)inventando o próprio cinema. Curiosamente, nessa semana, pensei em escrever uma carta para o diretor, sugerindo um enredo para um próximo filme. Vejo o fato com graça e também uma certa vergonha. Quem penso que sou? Achava a ideia digna e pensei em abrir mão de qualquer direito ou recompensa caso ele viesse a filmá-lo. Fico pensando agora: Talvez uma premonição. Uma misteriosa premonição, porque misteriosamente agora esqueci qual era o enredo, aquele mesmo que achei digno e interessante. Por que pensei nisso somente agora? Poderia não filmar o argumento, bastava ler a carta. Bastava continuar fumando/filmando.

Adendo: Em Jogo de Cena acho incrível aquela cena em que Fernanda Torres confessa a incapacidade de encenar a vida da outra e que por um momento pensou estar mentindo para Eduardo Coutinho, Ou seja, vivendo as contradições entre a encenação dela e a vida da mulher encenada. onde o real / onde a ficção?

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