Certa vez, ao escrever um tableau para Wilson Bueno (como fiz para Valêncio Xavier),
confessei a minha dificuldade em escrever sobre aquilo que amo. No mesmo texto
perguntara: "Por que sinto tanta
necessidade de escrever sobre as pessoas que amo justamente quando elas vão
embora?" e "Por que adio tanto escrever sobre aquilo que mais amo?"
É a mesma reflexão que faço hoje ao saber da trágica morte de Eduardo Coutinho.
Trágica como foi a de Wilson Bueno. Ambos assassinados brutalmente com facadas.
O corpo é fraco. Foi-se o nosso maior documentarista, um dos maiores cineastas
que o Brasil produziu.
Sempre imaginei e temi que Coutinho morresse devido ao uso
excessivo do tabaco. Fumante inveterado que era, acabaria sendo assim. É comum
vê-lo fumando nos filmes e nas entrevistas. Escrevo este tableau para o cineasta como se fumasse em sua homenagem seu último
cigarro.
Sempre achei Coutinho uma figura demasiado humana. Simples,
humilde, talentosa ao revelar o talento de qualquer pessoa, ou seja, de uma
pessoa comum. Quando o via em entrevistas, no entanto, o descobria
circunspecto, tartamudo, quase triste, um pouco sisudo. Talvez o motivo daquela
melancolia fosse também o problema mental de seu filho que tragicamente viria a
assassiná-lo (Pelo menos é o que dizem os jornais).
Mais um cigarro. O próximo é sempre o último. Fico pensando
como Eduardo (mais familiar) fumou seu último cigarro. Onde? O que pensava
enquanto fumava sem sabê-lo que seria o último. Se o soubesse seria o melhor e
o pior dos cigarros? Que marca fumava? Quantos maços por dia? Fiquei sabendo
hoje que o garoto propaganda do Marlboro, o caubói Eric Lawson, morreu de
câncer no pulmão dia 10 de janeiro (a morte só foi divulgada essa semana).
Cheguei a me referir algumas vezes neste blog a
Eduardo Coutinho, impressionado que estava pelo documentarismo brasileiro
contemporâneo. Tão impressionado continuo. Toquei em seu nome algumas vezes,
comentei brevemente "Jogo de Cena", "O fim e o princípio",
mas nunca dediquei a seus filmes nenhum comentário mais profundo, o que cada um
deles merecia. Por que não escrevi?
No cineclube que criei juntamente com o professor Luisandro Mendes de Sousa, na
FAFIUV (UNESPAR), chegamos a projetar e discutir "Cabra Marcado para
Morrer". A velha questão: encarar a esfinge ou continuar adiando escrever
sobre aquilo que mais amo, que mais me encanta? Fumar?
Assisti a quase todos os filmes de Coutinho. Desejei
escrever sobre cada um deles: sobre o acaso e a poesia de "O fim e o
princípio" e "Edifício Master". Sobre a magia e encantamento de
"Santo Forte". Sobre a inteligência e inventividade de "Jogo de
Cena" e "Cabra Marcado Para Morrer", capazes de problematizar os
próprios limites do gênero cinematográfico no qual investiam suas forças. Sobre
as delícias de "Babilônia 2000" (filmado no mesmo dia em que "O
primeiro dia", de Walter Salles, irmão de João Moreira Salles, um discípulo e amigo fiel de Coutinho). Sobre a
política de "Peões" (filmado no mesmo mês que "Entreatos", de João Moreira Salles - coincidências?). "Moscou"me inspirou
a tentar filmar "amadoristicamente" algo parecido, os bastidores da
montagem de uma peça teatral, o que nunca fiz. As coisas que nunca fizemos ou
que nunca terminamos também são belas.
Há cenas lindas em cada um dos filmes de Coutinho. Divido-as
em duas categorias: aquelas em que brasileiros comuns se revelam
extraordinariamente poéticos,
transformando-se em personagens incríveis, e aquelas em que, sutilmente,
encontramos a presença "física" do diretor interagindo com eles - digo física
porque mentalmente a presença de Coutinho está no filme todo, em todos eles. Física porque o
diretor eventualmente interroga, interagindo com as personagens, não para
dirigi-las mas para conduzi-las, não para forjar um efeito, mas para extrair
aquilo que está em potência nos seres que estão sendo filmados. Naturalmente, o
natural é sempre artifício. Coutinho sabe que a ficção é o alimento desse jogo
de cena. No entanto, sabe também que aquelas pessoas e aquelas histórias
existem. Como transformá-las em cinema? onde o real? onde a ficção? É comum
vê-lo aceitando cafezinhos das personagens, nas casas humildes que visitava, ficando
assim mais íntimo daqueles brasileiros e brasileiras, conquistando aquilo que
seria fundamental para sua obra de arte. É comum também vê-lo demonstrar
interesse pelas coisas simples apontadas pelos "entrevistados".
Coutinho sabia demonstrá-lo - e, de fato, o tinha - valorizando pequenos detalhes
que circundavam a(s) vida(s) daquelas pessoas: um bicho de estimação, uma foto,
uma roupa, um detalhe, uma saudade. Fumando quase sempre.
Em seus filmes, geralmente, o que mais me encanta são as
coisas simples, um homem cantando Frank Sinatra em "Edifício Master", uma mulher
cantando em "Babilônia 2000", Janis Joplin? Atores se emocionando em "Moscou"
e o diretor confessando seu quase fracasso em filmá-lo. As mulheres (atrizes ou
não - todas talvez sejam um pouco) incríveis de "Jogo de Cena",
surpresas e revelações aos espectadores. Muita coisa poderia escrever aqui, mas
prefiro rever os filmes.
Mais um cigarro. O que mais me impressionava no cineasta era
a capacidade de ser inventivo. Eu sempre esperava com muita curiosidade o
próximo filme. Isso porque sabia que em sua casa, na rua, na praça, no
escritório, Coutinho estava tramando uma próxima película, inventando um
próximo lance, (re)inventando o próprio cinema. Curiosamente, nessa semana,
pensei em escrever uma carta para o diretor, sugerindo um enredo para um
próximo filme. Vejo o fato com graça e também uma certa vergonha. Quem penso que sou?
Achava a ideia digna e pensei em abrir mão de qualquer direito ou recompensa
caso ele viesse a filmá-lo. Fico pensando agora: Talvez uma premonição. Uma
misteriosa premonição, porque misteriosamente agora esqueci qual era o enredo,
aquele mesmo que achei digno e interessante. Por que pensei nisso somente
agora? Poderia não filmar o argumento, bastava ler a carta. Bastava continuar
fumando/filmando.
Adendo: Em Jogo de Cena acho incrível aquela cena em que Fernanda Torres confessa a incapacidade de encenar a vida da outra e que por um momento pensou estar mentindo para Eduardo Coutinho, Ou seja, vivendo as contradições entre a encenação dela e a vida da mulher encenada. onde o real / onde a ficção?
Adendo: Em Jogo de Cena acho incrível aquela cena em que Fernanda Torres confessa a incapacidade de encenar a vida da outra e que por um momento pensou estar mentindo para Eduardo Coutinho, Ou seja, vivendo as contradições entre a encenação dela e a vida da mulher encenada. onde o real / onde a ficção?
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