segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Dead of Night e a ventriloquia



Em 2006, Slavoj Zizek, numa incursão cinematográfica, realizou o documentário O Guia Pervertido do Cinema, em que aplica suas teorias na análise de filmes. Ao lado de obras como Pássaros, Taxi Driver, Laranja Mecânica e Titanic, encontramos Dead of Night, de 1945, considerado por ele como um maravilhoso clássico britânico do horror. Zizek concentra sua leitura no episódio "O Ventríloquo", dirigido pelo cineasta brasileiro Alberto Cavalcanti. Sua atenção está voltada para o momento em que o personagem principal, Maxwell Frere, protagonizado por Michael Redgrave, numa explosão de violência destrói o seu boneco Hugo. Na cena seguinte, o vemos em um hospital, recobrando lentamente a consciência. A princípio sua voz está presa na garganta. Com dificuldade, Maxwell começa a falar, mas sua voz agora é a do boneco, e não a do boneco a sua, como seria o esperado nesse jogo de duplos. Quem controla a voz de quem?: "Hello Sylvester, I've been waiting you". Para Zizek, a lição é clara:  a única forma de livrar-me desse objeto parcial autônomo é converter-me nesse objeto. 

                                                       Alberto Cavalcanti

Franklin Alves Dassie, ao discutir o trabalho do poeta Sebastião Uchoa Leite, observa que a metáfora da ventroloquia, importante para compreender sua obra poética, quando encenada, "não permite a identificação total daquele que aí fala, uma vez que a relação entre os bonecos e o ventríloquo é marcada pela dúvida: "quem controla a voz de quem"? Essa não seria uma metáfora para entender apenas a obra de Uchoa Leite, marcada profundamente pelo jogo dos duplos, mas seria inerente a uma concepção poética que remonta ao nascimento da própria poesia moderna, cuja lírica, segundo Hugo Friedrich, deixa de ser entendida como linguagem em estado de ânimo, da alma pessoal. A poesia já não quer mais ser medida em base ao que comumente se chama de realidade. Ela prescinde da humanidade, no sentido tradicional, da experiência vivida, afastando o “eu” do artista. O “eu” moderno é um eu, assim, cindido, desterritorializado, outro, e o poeta passa a ser agora um operador da língua, ou seja, manipulador e marionete, ventríloquo e boneco. 
                                                      Sebastião Uchoa Leite

A tensão dissonante é o objetivo das artes modernas em geral. Sua obscuridade e desarmonia são intencionais. A poesia, como o cinema de Alberto Cavalcanti, quer tornar estranhos os conteúdos. É nesse caminho que, penso, poderíamos entender o abrir e fechar a boca do boneco, num jogo de vozes que sugere uma "subjetividade sempre em formação e nunca completa" (DASSIE, 2010). Nesse sentido, talvez a poesia de Sebastião Uchoa Leite possa nos ajudar a pensar o filme Dead of Night. Penso que os poemas de Uchoa podem dar potência ao filme de Alberto Cavalcanti, e vice-versa, produzindo mais duplos, mais dobras, que é sempre o objetivo de leitura, que é clone da obra que saiu diferente permanecendo in(fiel) a si mesmo: "figuras em princípio contrárias, que depois se mostram geminadas, duplas como as outras imagens que configuram essa obra" (idem). Trata-se, de uma "subjetividade em permanente conflito", para usar ainda uma expressão de Flanklin Alves Dassie, uma experiência não mais marcada pela afirmação de pura interioridade, nem de pura exterioridade, confrontadas por um limite, mas de um ir e vir entre o dentro e o fora, o eu e um outro, contaminados mutuamente por um limiar. Tanto no cinema de Alberto Cavalcanti e na poesia de Uchoa Leite, a linguagem é sim um corpo estranho e porque não dizer monstruoso. Michel Foucault, em "A Linguagem ao Infinito", observa que a obra de linguagem é o próprio corpo da linguagem que a morte lhe atravessa para lhe abrir esse espaço infinito em que repercutam os duplos: "E as formas dessa superposição constitutiva de toda obra só é possível na verdade decifrá-las nessas figuras adjacentes, frágeis, um pouco monstruosas em que o desdobramento se assinala" (2001). É o mesmo Foucault de Velásquez ao afirmar que a escrita significando não a coisa, mas a palavra, "a obra de linguagem não faria outra coisa além de avançar mais profundamente na impalpável densidade do espelho, suscitar o duplo deste duplo que é já a escrita, descobrir assim um infinito possível e impossível, perseguir incessantemente a palavra, mantê-la além da morte que a condena, e liberar o jorro de um murmúrio" (2001). Aliás, é no século XVIII, quando aparece uma linguagem que retoma e consome "em sua fulguração outra linguagem diferente, fazendo nascer uma figura mais dominadora na qual atuam a morte, o espelho e o duplo" (2001, p. 57), que Foucault situa o limiar de existência da própria literatura. e é seguindo o murmúrio apontado pelo filósofo que presto mais atenção no sussurro de ventríloquo, o mesmo que Sizek considera como fundamental para o cinema de horror.
No show do ventríloquo não há nem a "plena e inteira consciência de si mesmo", nem tampouco "o controle ou o domínio do outro" (DASSIE, 2010, p. 21). O eu é jogo e movimento, tal como prefigurado por Lacan, no Estadio do Espelho, ou pura instância discursiva, palavra, para Benveniste, e a imagem é puro simulacro, como percebemos na Lógica do Sentido, Deleuze.    
O elogio do duplo aparece em poemas de Sebastião Uchoa Leite como "Antimétodo": Desoriento-me / sem qualquer / método / ou sem qualquer fim / vou e não vou / mas vou / caio sem qualquer / alarde / o que é / e não é: mas é / desorientar-me / é meu método". No poema "Antimétodo 2": "pouco a pouco / embaralho tudo e nada / sou meu próprio / espantalho / fujo / de mim mesmo / finjo-me / da minha própria / esfinge / perdido em meu próprio / labirinto / sou o que sou / ou minto? será isso / uma regra secreta?". No poema "Um outro": "(quando acordo no entressono vejo-me / como se estivesse fora de mim mesmo: / é uma espécie de susto: / ali estou eu / parado como se fosse um outro / contratado para cometer um crime / quero voltar para dentro do sono / dentro do subsolo da mente / onde me jogo / e me dissolvo / e me abandono)". Em versos do poema "Drácula", onde sua imagem em negativo não se reflete no espelho, e no poema em prosa Espelho obscuro, onde o poeta relembra o filme "Dark Mirror", em que vemos duas gêmeas iguais em tudo, menos quanto às almas, que são opostas: "A assassina e a inocente, a psicopata e a vítima, iguais e o reverso uma da outra. O que é igual à ideia do espelho, insinuado como metáfora do limite e da morte. A imagem diante do espelho: o ser igual e a sua negação (...) Não se sabe qual está do lado de cá - o da inocência - e o que está do lado de lá - o do reverso perverso". A trama, como em Dead of Night, joga com a dúvida. No poema "Metassombro", o poeta escreve numa franca alusão a Mário de Sá Carneiro e Fernando Pessoa: "eu não sou eu / nem o meu reflexo / especulo-me na meia sombra / que é meta da claridade / distorço-me de intermédio / estou fora de foco / atrás da minha voz / perdi todo discurso / minha língua é ofídica / minha figura é a elipse".
A recorrência do duplo tanto no filme quanto em Uchoa Leite parece fomentar uma experiência que é experiência de um "fora de si", uma abertura ao outro e ao mesmo tempo uma abertura a si mesmo. Em ambos, parece haver um deslocamento que aponta para algo que está posto fora de seu lugar habitual, que não está em seu lugar apropriado, impressão potencializada pelo duplo. Imaginar um duplo de Cavalcanti em Uchoa Leite talvez seja uma forma de assimilar a conclusão de Sizek produzindo agora um duplo que intenta ser outro permanecendo si mesmo: uma forma de nos livrarmos de Dead of Night  é lendo Sebastião Uchoa Leite.

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