Em janeiro de 2018, perdemos o
escritor e jornalista Carlos Heitor Cony. Ele tinha 91 anos e na bagagem
intelectual uma larga experiência no jornalismo e uma vasta produção literária.
Perder talvez não seja uma palavra apropriada, porque literatos nunca morrem. A
arte, assim como a paternidade, é uma das formas que o homem encontrou para não
morrer, pervivendo neste mundo por meio de suas pegadas. Mas sempre que um
escritor do calibre de Cony se despede, fica-se a impressão de que perdemos
algo muito especial, restando em sua obra algo que ficou a ser dito e que, no
entanto, não mais será. Fica a memória e talvez seja ela a verdadeira pegada
nossa nesse mundo. Aliás, a memória é o tema do romance mais conhecido e
premiado de Cony.
“Quase Memória”, publicado em
1995, é um dos romances mais bonitos da literatura brasileira contemporânea. Eu
estava relendo-o, coincidentemente, quando seu autor faleceu. O livro é uma
homenagem para seu pai Ernesto Cony. Mas poderia ser lido também como uma
espécie de autobiografia, ou melhor uma autoficção, já que o autor, nas páginas
iniciais do livro, numa espécie de preâmbulo, problematiza a relação entre
ficção e realidade, misturando no romance esses dois universos. Trata-se de uma
Teoria Geral do Quase na qual o escritor confessa considerar seu livro um
“quase romance” por achar que lhe falta entre outras coisas a linguagem. Para
ele, o livro oscilaria, desgovernado, entre a crônica, a reportagem e a ficção.
Personagens e situações reais se misturam com elementos fictícios. Com ares que
fazem lembrar o filme “Amarcord”, de Fellini, “Quase Memória” é uma dessas
obras em que a qualidade de escrita, o real valor do amor e da amizade, a
permanência do passado (transformado numa ilha de edição) e o sentido
misterioso da vida produzem afetos que justificam uma leitura, o tempo que
gastamos com ela e o entusiasmo que ela pode produzir em um leitor.
Ernesto Cony
“Amanhã farei grandes coisas”. O
autor da frase, personagem do romance, e pai do narrador do livro, é mote para
Cony desfiar uma série de lembranças de sua infância e juventude, tendo seu
progenitor como eixo em torno do qual gira toda a narrativa. O enredo tem como
estopim uma situação específica. O narrador recebe um misterioso embrulho, sem
remetente, no qual identifica as marcas do pai: o laço do barbante sobre o qual
está envolvido o pacote, a sua letra inconfundível, bem como o cheiro de fumo e
alfazema que gostava de usar, “metade por vaidade, metade por acreditar que a
alfazema cortava o mau-olhado, do qual tinha hereditário horror”. O fato
curioso é que o pai havia morrido dez anos antes do recebimento da
correspondência. A partir de então, desfia-se uma rede de memórias que terá o
pai como personagem principal: a capacidade que ele tinha de pôr solenidade nas
coisas pequenas, a habilidade para contar histórias e confeccionar balões em
datas especiais, a disposição para aventuras inusitadas, a facilidade para
envolver-se em confusões homéricas, um jeito de viver e olhar a vida de forma
bastante diferente: “sempre vivera satisfeito, era do tipo que recebia um
bom-dia como uma homenagem, de tudo em que se metia dava um jeito de extrair
prazer pessoal”. Era o sujeito que todo dia, ao dormir, pensava consigo mesmo:
“Amanhã farei grandes coisas!”. Desconfio que toda família tem um sujeito como
esse personagem. Na minha, era o Valdir, um primo que tinha habilidades
incríveis para contar histórias e um jeito muito seu de viver e ver a vida.
O mistério do “quase romance” gira
em torno do embrulho recebido. Teria sido mesmo o pai a enviá-lo? O narrador
hesita a todo momento em abri-lo. E é em torno dessa expectativa que o livro
vai sendo tecido e as memórias evocadas. Não revelo aqui o desfecho da trama
para não colocar a carroça na frente dos bois aos leitores que ainda não se
aventuraram pelas páginas de Cony. Cumpre dizer que o livro é também um passeio
pelo Rio de Janeiro da primeira metade do século XX. Com ele, Carlos Heitor
Cony recebeu dois Jabuti, nas categorias Livro do Ano e Melhor Romance, em
1996. No ano 2000, em sua posse na Academia Brasileira de Letras, o escritor,
depois de confessar-se agnóstico e afirmando não ter a “disciplina mental para
ser de esquerda”, nem a “firmeza monolítica para ser de direita”, tampouco se
sentindo confortável na “imobilidade tática, muitas vezes oportunista, do
centro”, evocou as páginas de “Quase Memória”: “(...) sou filho de um
jornalista obscuro que transformei num personagem que todas as noites prometia
a si mesmo: 'Amanhã
farei grandes coisas!' Nunca fez grandes coisas, mas acreditava que viver era
uma grande coisa”. Antes de morrer, Cony desejou uma despedida sem enterro ou
homenagens. Partiu humilde.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, em União da Vitória,
no dia 27 de janeiro de 2018.
Um comentário:
Caio, muito obrigado pelo texto com o qual presenteia seus leitores e os de Carlos Heitor Cony, autor que merece ser lembrado. Um abraço.
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