segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

Livro do Quase ou o adeus a Carlos Heitor Cony




Em janeiro de 2018, perdemos o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony. Ele tinha 91 anos e na bagagem intelectual uma larga experiência no jornalismo e uma vasta produção literária. Perder talvez não seja uma palavra apropriada, porque literatos nunca morrem. A arte, assim como a paternidade, é uma das formas que o homem encontrou para não morrer, pervivendo neste mundo por meio de suas pegadas. Mas sempre que um escritor do calibre de Cony se despede, fica-se a impressão de que perdemos algo muito especial, restando em sua obra algo que ficou a ser dito e que, no entanto, não mais será. Fica a memória e talvez seja ela a verdadeira pegada nossa nesse mundo. Aliás, a memória é o tema do romance mais conhecido e premiado de Cony.


“Quase Memória”, publicado em 1995, é um dos romances mais bonitos da literatura brasileira contemporânea. Eu estava relendo-o, coincidentemente, quando seu autor faleceu. O livro é uma homenagem para seu pai Ernesto Cony. Mas poderia ser lido também como uma espécie de autobiografia, ou melhor uma autoficção, já que o autor, nas páginas iniciais do livro, numa espécie de preâmbulo, problematiza a relação entre ficção e realidade, misturando no romance esses dois universos. Trata-se de uma Teoria Geral do Quase na qual o escritor confessa considerar seu livro um “quase romance” por achar que lhe falta entre outras coisas a linguagem. Para ele, o livro oscilaria, desgovernado, entre a crônica, a reportagem e a ficção. Personagens e situações reais se misturam com elementos fictícios. Com ares que fazem lembrar o filme “Amarcord”, de Fellini, “Quase Memória” é uma dessas obras em que a qualidade de escrita, o real valor do amor e da amizade, a permanência do passado (transformado numa ilha de edição) e o sentido misterioso da vida produzem afetos que justificam uma leitura, o tempo que gastamos com ela e o entusiasmo que ela pode produzir em um leitor.

Ernesto Cony

“Amanhã farei grandes coisas”. O autor da frase, personagem do romance, e pai do narrador do livro, é mote para Cony desfiar uma série de lembranças de sua infância e juventude, tendo seu progenitor como eixo em torno do qual gira toda a narrativa. O enredo tem como estopim uma situação específica. O narrador recebe um misterioso embrulho, sem remetente, no qual identifica as marcas do pai: o laço do barbante sobre o qual está envolvido o pacote, a sua letra inconfundível, bem como o cheiro de fumo e alfazema que gostava de usar, “metade por vaidade, metade por acreditar que a alfazema cortava o mau-olhado, do qual tinha hereditário horror”. O fato curioso é que o pai havia morrido dez anos antes do recebimento da correspondência. A partir de então, desfia-se uma rede de memórias que terá o pai como personagem principal: a capacidade que ele tinha de pôr solenidade nas coisas pequenas, a habilidade para contar histórias e confeccionar balões em datas especiais, a disposição para aventuras inusitadas, a facilidade para envolver-se em confusões homéricas, um jeito de viver e olhar a vida de forma bastante diferente: “sempre vivera satisfeito, era do tipo que recebia um bom-dia como uma homenagem, de tudo em que se metia dava um jeito de extrair prazer pessoal”. Era o sujeito que todo dia, ao dormir, pensava consigo mesmo: “Amanhã farei grandes coisas!”. Desconfio que toda família tem um sujeito como esse personagem. Na minha, era o Valdir, um primo que tinha habilidades incríveis para contar histórias e um jeito muito seu de viver e ver a vida.




O mistério do “quase romance” gira em torno do embrulho recebido. Teria sido mesmo o pai a enviá-lo? O narrador hesita a todo momento em abri-lo. E é em torno dessa expectativa que o livro vai sendo tecido e as memórias evocadas. Não revelo aqui o desfecho da trama para não colocar a carroça na frente dos bois aos leitores que ainda não se aventuraram pelas páginas de Cony. Cumpre dizer que o livro é também um passeio pelo Rio de Janeiro da primeira metade do século XX. Com ele, Carlos Heitor Cony recebeu dois Jabuti, nas categorias Livro do Ano e Melhor Romance, em 1996. No ano 2000, em sua posse na Academia Brasileira de Letras, o escritor, depois de confessar-se agnóstico e afirmando não ter a “disciplina mental para ser de esquerda”, nem a “firmeza monolítica para ser de direita”, tampouco se sentindo confortável na “imobilidade tática, muitas vezes oportunista, do centro”, evocou as páginas de “Quase Memória”: “(...) sou filho de um jornalista obscuro que transformei num personagem que todas as noites prometia a si mesmo: 'Amanhã farei grandes coisas!' Nunca fez grandes coisas, mas acreditava que viver era uma grande coisa”. Antes de morrer, Cony desejou uma despedida sem enterro ou homenagens. Partiu humilde.             

Publicado originalmente no jornal Caiçara, em União da Vitória, 
no dia 27 de janeiro de 2018.

Um comentário:

Anônimo disse...

Caio, muito obrigado pelo texto com o qual presenteia seus leitores e os de Carlos Heitor Cony, autor que merece ser lembrado. Um abraço.