domingo, 6 de maio de 2018

Onde estão os anônimos que assentaram os tijolos? Por onde anda Raduan Nassar?



Há alguns dias, 23 de abril, a juíza Carolina Lebbos negou vários pedidos de visita a Lula, que está preso na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba. Isso dias depois de não autorizar também as visitas do teólogo Leonardo Boff e do prêmio Nobel da Paz, o argentino Adolfo Pérez Esquivel. As fotos de Boff sentado em frente à sede da PF, independente de questões partidárias, são comoventes, lembrando um quadro de Edward Hooper. Entre os vinte e três pedidos indeferidos pela juíza, um chamou-me a atenção em especial, aquele feito pelo escritor Raduan Nassar. 
Autor de uma das obras mais potentes e bonitas da literatura brasileira do século XX – certamente uma das que mais me emocionam -, Raduan Nassar ficou conhecido depois de publicar “Lavoura Arcaica” (1975) e “Um Copo de Cólera” (1978). Causou um frenesi nos meios literários pela alta qualidade de sua narrativa e logo depois, misteriosamente, silenciou, parando de escrever e abandonando, assim, a literatura. Os leitores tiveram que se contentar com a publicação nos anos 90 de uma série de pequenos relatos antigos, reunidos pela Companhia das Letras com o título “Menina a Caminho”. Raduan desapareceu da mídia, comprou um sítio e virou agricultor, talvez pensando em cultivar plantas mais nobres. Os motivos que o levaram a abandonar a escrita literária foram amplamente discutidos pela crítica, mas nunca devidamente elucidados. São mistérios do autor e sua arte.



Raduan prosperou como agricultor, a fazenda cresceu e há alguns anos o escritor reapareceu na mídia devido ao fato de ter doado a propriedade para o Governo Federal com a contrapartida de que ali fosse instalado um complexo universitário que oferecesse acesso gratuito ao ensino superior a filhos de trabalhadores rurais, negros e indígenas. O Governo, na época presidido por Lula, aceitou e hoje ali funciona um campus vinculado à UFSCAR (Universidade Federal de São Carlos), atendendo mais de quinhentos alunos. Uma parte da propriedade foi doada a um antigo e leal funcionário de Raduan.
Avesso a entrevistas e aparições na mídia, o discreto autor voltou a aparecer em 2016 quando recebeu o Prêmio Camões de Literatura, o mais importante da Língua Portuguesa. Na cerimônia de premiação, Raduan disparou um discurso crítico contra o Governo – um dos responsáveis pela premiação -, sustentando que os fatos atuais, pós-impeachment, configuram um governo repressor atrelado ao neoliberalismo com sua “escandalosa concentração de riquezas”: “(...) mesmo o governo que está aí foi posto e continua amparado pelo Ministério Público e de resto pelo Supremo Tribunal Federal”. O discurso foi rebatido logo após pelo Ministro da Cultura na época, Roberto Freire, em uma veemente defesa ao Governo de Temer. Freire foi vaiado pela plateia.


Fico pensando nesses três episódios, o pedido de visita negado, a doação de sua propriedade para a construção de um campus universitário, o forte discurso contra o Governo na premiação Camões. Soma-se a esses acontecimentos um outro, não menos curioso. Durante a campanha presidencial de Dilma, o autor gravou um vídeo que circulou na internet em apoio à candidata. Fatos inusitados para quem conhece o perfil do escritor e agricultor recluso. Episódios que demonstram não ser assim tão silencioso o seu silêncio. Pelo contrário, Raduan reverbera politicamente na literatura e fora dela. Trata-se da tomada de posição do intelectual em tempos de crise.
Depois do Prêmio Camões, em 2016, Raduan teve toda a sua produção reunida em um volume intitulado “Obra Completa”, que saiu também pela Companhia das Letras. Além dos já citados livros, a publicação trouxe ainda dois contos inéditos e o curioso e belo ensaio “A corrente do esforço humano”, escrito em 1981, mas publicado só em 1987, na Alemanha. Imagino que este ensaio nos ajuda a entender melhor o pensamento do literato, bem como compreender os episódios citados.
No texto, Raduan critica o complexo de inferioridade que ronda os brasileiros, a se sentirem, em sua grande maioria, menos importantes que os estrangeiros. Para o autor, as ideias de que os produtos importados são melhores e de que o homem europeu é superior são antigas e estão muito presentes no pensamento do brasileiro e mesmo no do estrangeiro. Para Raduan, apesar das mudanças ocorridas no pós-guerra, o prestígio europeu ainda é enorme. O homem comum assim como os povos periféricos jamais tiveram seus nomes inscritos como vencedores: “Entretanto, quando se entra em uma residência bem posta, é legítimo perguntar, diante do orgulho do dono da casa, onde estão os anônimos que assentaram os tijolos”. Como seria legítimo perguntar, para os países desenvolvidos, “onde estão os povos, humilhados e ofendidos que concorreram para o seu brilho”. O escritor defende, ao invés da importação e da cópia dos países desenvolvidos, a absorção do que interessaria à suposta comunidade brasileira em termos de pesquisa e conquistas técnicas. Isso porque as ideias são universais, “pertencendo antes à corrente do esforço humano (...)”. Perto de encerrar o ensaio, Raduan Nassar escreve: “Supondo-se que todo homem seja portador de uma exigência ética, não há como estar de acordo com a dominação de uns sobre os outros”. O texto assim nos apresenta um Raduan muito consciente e politizado. Seu silêncio faz barulho.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória - PR, no dia 05 de maio de 2017

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