Recentemente, a
editora Grafatório reuniu em uma bela edição artesanal, intitulada “A hora da
lâmina” (2017), os últimos ensaios do poeta Paulo Leminski, publicados na Folha
de Londrina entre abril e junho de 1989, algumas semanas antes de sua trágica e
precoce partida. Inéditos até agora em livro, os artigos – caracterizados pelo
autor como textos-ninja – mostram a vitalidade, a inteligência e a
versatilidade que o artista curitibano carregou até o final da vida.
Poeta, prosador,
tradutor, compositor e roteirista, tendo atuado também no jornalismo, na
publicidade e na televisão, Leminski foi uma das mentalidades mais criativas da
segunda metade do século XX no Brasil. Herdeiro do concretismo e de outros
movimentos vanguardistas - mas também leitor de uma tradição clássica que vai
da literatura grega e latina até à poesia oriental -, o paranaense foi autor de
alguns dos livros mais interessantes da literatura brasileira contemporânea.
Nos últimos anos, sua obra literária e musical tem sido reavaliada e consagrada
pelo público, e o samurai malandro - como Leyla Perrone Moisés o caracterizou -
vai passando de poeta de província à celebridade nacional.
Leminski foi também professor de cursinho e lutador de judô
A veia
ensaística de Leminski – ainda desconhecida ou não muito lida por boa parte dos
leitores - é muito fértil e de certa forma põe em relação a criatividade
poética do escritor bem como seu olhar crítico não apenas sobre a literatura,
mas sobre a cultura em geral, atingindo, assim, outros domínios, como os da
música, da filosofia, da política etc. Ele escreveu no prefácio de “Anseios
Crípticos” - sua primeira antologia de artigos -, que seus anseios/ensaios eram
“incursões conceptuais em busca do sentido”. Para Leminski, só buscar sentido
fazia realmente sentido na vida. Dessa forma, os ensaios publicados em jornais
e revistas o ajudavam a entender a literatura, a arte, a vida em geral, bem
como permitiam a ele comunicar com os leitores seu olhar sobre o mundo. Registre-se
que o poeta não gostava que seus textos-ninja fossem chamados de crônicas,
talvez por perceber neles uma potencialidade poética e reflexiva que suplantava
o gênero tradicionalmente explorado por escritores em jornais brasileiros.
Leminski teve
tempo de publicar oito pequenos textos na Folha de Londrina antes de sua morte
(o primeiro ensaio foi publicado no dia 07 de abril de 1989, exatamente dois
meses antes do suspiro derradeiro). Mesmo bastante fragilizado pela cirrose
hepática, e sem conseguir se livrar do vício pelo álcool, o escritor não abriu
mão daquela qualidade que caracterizou toda a sua produção.
Felipe Machado,
editor de “A hora da lâmina”, observou no prefácio do livro que, em seus textos
derradeiros, Leminski esboçou um “verdadeiro elogio do conflito”, lançando
bases para um “entendimento bélico da vida cotidiana”. Isso porque em tais
ensaios o autor escreveu sem trégua e feito um franco-atirador sobre alguns
temas que caracterizaram sua produção crítica e poética, como o rock and roll,
a publicidade, a cultura zen e a arte da guerra.
Nos textos
iniciais, “Como era boa nossa banda” e “Subversive rock”, Leminski parece
ironizar e ao mesmo tempo lamentar a decadência dos grandes gestos, radicais e
revolucionários, do rock em roll, estilo que “fez a cabeça” de muitos nos anos
70, 80 e 90. O poeta-ensaísta cita Titãs, Ultraje a Rigor, Legião Urbana, Ira!,
RPM, Paralamas do Sucesso, Lobão, Cazuza, sem talvez imaginar que eles
sobreviveriam a ele (alguns na ativa até hoje).
No texto sobre a
publicidade, o autor esboça uma reflexão bastante ácida sobre seu universo a
moldar, com sua força irresistível, os padrões de gosto social. Como os apelos
da publicidade se voltam, segundo Leminski, para o hedonismo mais pueril, não
estranha vermos nesse mundo um equivalente do “colo materno”. O consumo equivale
à grande mãe a fornecer a seus filhos, conforto, segurança e o prazer do
aconchego. O poeta, que era também publicitário, sabia muito bem o que isso
significava.
Nos textos sobre
a filosofia zen, Leminski discute, por exemplo, a separação do corpo e da mente
operada por nossa cultura, em contraposição à filosofia zen, que postula uma
relação de unidade entre esses dois elementos. Leminski observa que ela pode
ser encontrada na prática do lúdico, na arte, no esporte, no amor e no sexo.
São áreas do inutensílio – conceito amplamente discutido em sua obra – em que
vivemos para além da tirania do lucro e da objetividade.
Nos últimos
textos, a guerra é o tema sobre o qual volteia o pensamento ninja do poeta.
Neles, o autor discute - da Guerra do Contestado à obra de Sun Tzu, Clausewitz
e Myamoto Musashi - a arte da guerra como inerente aos “modos de ser cotidianos
de cada pessoa”. Isso não significa que o autor faz apologia à guerra, mas
apenas que ela não é analisada apenas como algo que traz dor e destruição, mas
também que permite ao homem aprimorar seus limites, conhecendo-se mais
plenamente. Há, então, no último Leminski, a “assunção plena do caráter bélico
do ato de viver”, para usar sua frase no ensaio “Plano Dois”. Nesse sentido,
Leminski aprendeu com a arte da guerra a lutar na guerra da vida. E fez disso
também uma arte. O último ensaio saiu no jornal cinco dias antes de dizer adeus.
Lutou e escreveu até o final.
Publicado originalmente no jornal Caiçara,
de União da Vitória (PR), em 21 de abril de 2018
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