sábado, 21 de abril de 2018

Os últimos ensaios/anseios de Leminski




Recentemente, a editora Grafatório reuniu em uma bela edição artesanal, intitulada “A hora da lâmina” (2017), os últimos ensaios do poeta Paulo Leminski, publicados na Folha de Londrina entre abril e junho de 1989, algumas semanas antes de sua trágica e precoce partida. Inéditos até agora em livro, os artigos – caracterizados pelo autor como textos-ninja – mostram a vitalidade, a inteligência e a versatilidade que o artista curitibano carregou até o final da vida.
Poeta, prosador, tradutor, compositor e roteirista, tendo atuado também no jornalismo, na publicidade e na televisão, Leminski foi uma das mentalidades mais criativas da segunda metade do século XX no Brasil. Herdeiro do concretismo e de outros movimentos vanguardistas - mas também leitor de uma tradição clássica que vai da literatura grega e latina até à poesia oriental -, o paranaense foi autor de alguns dos livros mais interessantes da literatura brasileira contemporânea. Nos últimos anos, sua obra literária e musical tem sido reavaliada e consagrada pelo público, e o samurai malandro - como Leyla Perrone Moisés o caracterizou - vai passando de poeta de província à celebridade nacional.

Leminski foi também professor de cursinho e lutador de judô

A veia ensaística de Leminski – ainda desconhecida ou não muito lida por boa parte dos leitores - é muito fértil e de certa forma põe em relação a criatividade poética do escritor bem como seu olhar crítico não apenas sobre a literatura, mas sobre a cultura em geral, atingindo, assim, outros domínios, como os da música, da filosofia, da política etc. Ele escreveu no prefácio de “Anseios Crípticos” - sua primeira antologia de artigos -, que seus anseios/ensaios eram “incursões conceptuais em busca do sentido”. Para Leminski, só buscar sentido fazia realmente sentido na vida. Dessa forma, os ensaios publicados em jornais e revistas o ajudavam a entender a literatura, a arte, a vida em geral, bem como permitiam a ele comunicar com os leitores seu olhar sobre o mundo. Registre-se que o poeta não gostava que seus textos-ninja fossem chamados de crônicas, talvez por perceber neles uma potencialidade poética e reflexiva que suplantava o gênero tradicionalmente explorado por escritores em jornais brasileiros.
Leminski teve tempo de publicar oito pequenos textos na Folha de Londrina antes de sua morte (o primeiro ensaio foi publicado no dia 07 de abril de 1989, exatamente dois meses antes do suspiro derradeiro). Mesmo bastante fragilizado pela cirrose hepática, e sem conseguir se livrar do vício pelo álcool, o escritor não abriu mão daquela qualidade que caracterizou toda a sua produção.


Felipe Machado, editor de “A hora da lâmina”, observou no prefácio do livro que, em seus textos derradeiros, Leminski esboçou um “verdadeiro elogio do conflito”, lançando bases para um “entendimento bélico da vida cotidiana”. Isso porque em tais ensaios o autor escreveu sem trégua e feito um franco-atirador sobre alguns temas que caracterizaram sua produção crítica e poética, como o rock and roll, a publicidade, a cultura zen e a arte da guerra.
Nos textos iniciais, “Como era boa nossa banda” e “Subversive rock”, Leminski parece ironizar e ao mesmo tempo lamentar a decadência dos grandes gestos, radicais e revolucionários, do rock em roll, estilo que “fez a cabeça” de muitos nos anos 70, 80 e 90. O poeta-ensaísta cita Titãs, Ultraje a Rigor, Legião Urbana, Ira!, RPM, Paralamas do Sucesso, Lobão, Cazuza, sem talvez imaginar que eles sobreviveriam a ele (alguns na ativa até hoje).
No texto sobre a publicidade, o autor esboça uma reflexão bastante ácida sobre seu universo a moldar, com sua força irresistível, os padrões de gosto social. Como os apelos da publicidade se voltam, segundo Leminski, para o hedonismo mais pueril, não estranha vermos nesse mundo um equivalente do “colo materno”. O consumo equivale à grande mãe a fornecer a seus filhos, conforto, segurança e o prazer do aconchego. O poeta, que era também publicitário, sabia muito bem o que isso significava.



Nos textos sobre a filosofia zen, Leminski discute, por exemplo, a separação do corpo e da mente operada por nossa cultura, em contraposição à filosofia zen, que postula uma relação de unidade entre esses dois elementos. Leminski observa que ela pode ser encontrada na prática do lúdico, na arte, no esporte, no amor e no sexo. São áreas do inutensílio – conceito amplamente discutido em sua obra – em que vivemos para além da tirania do lucro e da objetividade.
Nos últimos textos, a guerra é o tema sobre o qual volteia o pensamento ninja do poeta. Neles, o autor discute - da Guerra do Contestado à obra de Sun Tzu, Clausewitz e Myamoto Musashi - a arte da guerra como inerente aos “modos de ser cotidianos de cada pessoa”. Isso não significa que o autor faz apologia à guerra, mas apenas que ela não é analisada apenas como algo que traz dor e destruição, mas também que permite ao homem aprimorar seus limites, conhecendo-se mais plenamente. Há, então, no último Leminski, a “assunção plena do caráter bélico do ato de viver”, para usar sua frase no ensaio “Plano Dois”. Nesse sentido, Leminski aprendeu com a arte da guerra a lutar na guerra da vida. E fez disso também uma arte. O último ensaio saiu no jornal cinco dias antes de dizer adeus. Lutou e escreveu até o final.      

Publicado originalmente no jornal Caiçara, 
de União da Vitória (PR), em 21 de abril de 2018

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