Em maio de 2010,
o escritor paranaense Wilson Bueno foi brutalmente assassinado em sua própria
casa. Ele vivia no Bacacheri, em Curitiba, mas sua verdadeira morada estava
situada no mundo das belas palavras, com seus variados matizes, suas nuances
fronteiriças que, sem dúvida, contribuíram para expandir sua língua literária.
Desde então, lamentamos a perda de um dos escritores mais inusitados, inventivos
e singulares da literatura latino-americana contemporânea.
Bueno tencionou
como poucos no Brasil os limites da língua. Com suas fusões linguísticas
trans-geográficas, em seus volteios transbarrocos, em suas torções sintáticas,
extraiu do encurvamento de suas formas uma potência poética bastante incomum,
capaz de contagiar e contaminar o nosso idioma com outros falares. Aliás, André
Dhôtel escreveu certa vez que a única maneira de defender uma língua é atacá-la
e que “cada escritor é obrigado a fabricar para si uma língua”. Os bons
escritores são aqueles que criam a sua própria língua. Guimarães Rosa que o
diga. Gilles Deleuze, o filósofo das dobras, por sua vez, observou que escrever
não significa impor uma forma a uma matéria viva. Isso porque a literatura está
antes “ao lado do informe, ou do inacabamento”. Nesse sentido, para ele,
escrever é um caso de devir, “sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e
que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida”. Clarice Lispector diria, com
outras palavras: “Quero não o que está feito mas o que tortuosamente ainda se faz”.
Ilustração: Ricardo Humberto
A prosa de
Wilson Bueno desabrocha em rodas de redemoinho, dobrando-se e desdobrando-se
sobre si mesma, cada vez que abrimos seus livros a dançar com suas palavras.
Das crônicas poéticas de “Bolero´s Bar” (1986) ao testamento literário de
“Mano, a noite está velha” (2011), o autor produziu uma série de pérolas que
transitaram da poesia concisa aos bestiários, passando pelo diálogo com outros
autores – Machado de Assis e Kafka em dois livros específicos - e pela
confecção de uma prosa poética neobarroca. Em sua obra, o autor forjou uma
curiosa língua literária, misturando o português, o espanhol, o guarani e
inclusive o árabe, fazendo do contato entre tais domínios linguísticos um caso
amoroso com conotações eróticas. É o que desenvolveu, por exemplo, na bela e
inquietante novela “Mar Paraguayo” (1992), que segundo Heloísa Buarque de
Hollanda, “promove a declaração, subterrânea, da falência das fronteiras”. Sua
política de (des)territorialização da linguagem parece ter reafirmado o
argumento de Sérgio Buarque de Holanda de que “somos ainda hoje uns desterrados
em nossa terra”, ou ainda de que somos sempre e inevitavelmente, na língua que
for, estranhos a nós mesmos.
Há um livro
ainda muito pouco conhecido de Bueno no qual a mistura erótica das línguas se
expande para a própria narrativa. Trata-se de “Mascate”, novela publicada
postumamente, em 2014, pela Yiyi Jambo Cartonera, e ambientada na fronteira do
Brasil - possivelmente no Mato Grosso do Sul - com seu país hermano, o Paraguai.
A obra discorre sobre a relação amorosa entre uma prostituta - possivelmente um
homem travestido de mulher ou um transgênero, fica apenas sugerido - e um árabe
de nome Faissal Mohamed el-Rachid, um mascate que se torna amante da
protagonista. No texto, a narradora, que se diz “marafona” (como na novela “Mar
Paraguayo”), se põe a escrever sobre o seu amor ao sírio, que conheceu “en la
tarde preguiçossa del putero de Eldorado do Paraná con su maletita comercial
llena de bugigangas preciosas”. A história deste encontro, “aberta a la
felicidade del viento”, é considerada pela protagonista como uma “charla
mateada de azúcar y vino”.
Com suas
alegrias e tristezas, a marafona vai desfiando lembranças de seus encontros
amorosos com Faissal, expressando seus desejos, lamentando sua partida: “tratê
desto muezim pî’aitteguivé, com carícias y indormidas auroras”. No entanto, o
grande tema do livro parece ser a própria linguagem amorosa. E como nos ensinou
Barthes, o discurso amoroso é sempre de uma extrema solidão. Para ele, o amante
não para de correr dentro da própria cabeça. Sua fala existe unicamente por
“ondas de linguagem”. Nas linhas de “Mascate”, mais do que escrever sobre o
desejo – que em certo sentido se revela impossível – a narradora corporifica a
própria linguagem como objeto de desejo. O que deseja aqui e quer ser desejado
é o próprio texto, cama de lençóis e palavras. E naturalmente o desejo do amor
aumenta à medida que surge a impossibilidade de satisfazê-lo. É quando Rachid
vai embora. E sofre o coração da narradora: “En esto momento turbinado y
turbilhonado es apenas um corazón latindo às ecâncaras, descarado y lacrimoso,
mi marafo corazón pidiendo a los derruimentos del dia ni que sea un miligrama
de ternura, atención ô lo que sea el amor”.
Em meio às
frases do livro, surgem palavras árabes e guaranis que vão se integrando ao
portunhol selvagem de Bueno: Ahd lulo (colar de pérolas), Ãrtiah nafse (paz de
espírito), biah (mascate), shoh lal watta (crepúsculo), biah ashiah sãcar (doce
mascate amante meu), purahéirori (canção alegre), tecorori (alegria), taperé
(povoado deserto), ñuatimbucú (espinho), che che mandu´á (eu me recordo), entre
tantas outras. Essa algaravia babélica poderia ser lida de vários modos na obra
de Bueno. Aponto apenas para uma das possíveis reflexões. Trata-se de pensar
nos contatos entre culturas diferentes, principalmente em zonas fronteiriças,
gerando falares híbridos que problematizam a ideia de uma territorialidade
estável. Essa pluralidade linguística e cultural é bem assimilada por Wilson
Bueno que soube tirar proveito disso sem esquecer de que as palavras não têm
fronteiras.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR),
em 12 de maio de 2018.
Um comentário:
Preciso ler mais as coisas dele... mas haja tempo. Só li o Boleros Bar.
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