Há alguns anos, em uma entrevista concedida à revista
literária Etcétera, de Curitiba, o poeta Ademir Assunção observou que a
linguagem constrói mundos e quando um autor desautomatiza a linguagem,
dependendo do grau de sucesso nisso, “desautomatiza também a percepção do mundo
dos leitores e modifica a percepção da realidade, ou das realidades”. Gosto
desse argumento porque ele traz à tona uma das grandes questões que envolve a
vocação da poesia, que é a de ser um laboratório da língua, lugar onde ela (a
língua) se experimenta na sua máxima potencialidade. Pensamos condicionados
pelas regras de nossa língua e a poesia, ao desautomatizar a linguagem, tirando-a
de seu lugar comum, da zona de conforto do idioma, é nesse sentido uma fonte
proteica não só de toda e qualquer língua, mas também do próprio pensamento. A
poesia é essa máquina de produzir imagens tal qual caleidoscópio. Giramos,
lemos, e assim novos desenhos estão destinados a brotarem do risco (friso aqui
o duplo sentido) de todo e qualquer poeta. Poderíamos dizer também,
redesenhando os traços de Ademir Assunção, que a poesia, ao desmontar a
linguagem, desmonta também a nossa forma de ver o mundo. Desmontagem e
desautomatização são essenciais no jogo da atividade poética. Gire mais o
caleidoscópio e verá uma sempre nova paisagem de formas e cores. Desmontar
a linguagem tem a ver nesse sentido com o ato de brincar. O jogo está sempre
presente na lógica de uma brincadeira. E isso dá prazer. O poeta brinca com as
palavras, como a criança faz seus jogos na moral de seu brinquedo.
Ademir Assunção
Escrevo tudo isso apenas para saudar a poesia de
Ondjaki, escritor nascido em 1977 na cidade de Luanda. Premiado na Angola, seu
país de origem, na Europa, e também no Brasil, Ondjaki é autor de romances,
contos e poesia, tendo sido traduzido já para o francês, espanhol, italiano,
alemão, inglês, sérvio e sueco. Basta abrir seu livro de poemas “Há prendisajens
com o xão (o segredo húmido da lesma & outras descoisas” (Pallas, 2011),
para percebermos a desautomatização da linguagem de que nos fala Ademir
Assunção, gerada em grande parte pela desmontagem da língua portuguesa, a
começar pelo próprio título da obra. Essa experiência, que faz lembrar a todo
instante do mestre brasileiro Manoel de Barros - aliás fartamente incensado no
livro -, faz de Ondjaki uma das vozes renovadoras da literatura de língua
portuguesa.
Ondjaki
A todo instante os poemas do angolano, ao desmontarem
a linguagem tradicional - produzindo aquele estranhamento que faz da poesia o
que a poesia é, na emergência de sua literariedade – embaralham as ideias e os
sentidos do leitor apontando para novos sentidos fecundados por sua
sensibilidade lírica, bem como por suas experiências frasais (fractais) capazes
de alimentarem não apenas sua língua poética, mas principalmente a imaginação
do leitor, uma imaginação que é também conhecimento profundo sobre as coisas.
Ondjaki olha para o chão a todo instante como a colher estrelas, bem como
observa com afinco o céu para nele semear o alimento de sua escrita. Seguindo o
preceito de Manoel de Barros, para quem é preciso “chegar a traste para ter
grandezas”, o poeta Ondjaki escreve no poema “Chão”, que abre o livro:
apetece-me des-ser-me; / reatribuir-me a átomo. / cuspir castanhos grãos / mas
gargantadentro; / isto seja: engolir-me para mim / poucochinho a cada vez. / um
por mais um: areios. / assim esculpir-me a barro / e re-ser chão. Muito chão. /
apetece-me chãonhe-ser-me”. Seus jogos verbais vão estabelecendo uma sintaxe
muito peculiar que me faz lembrar daquilo que escreveu Vilém Flusser sobre a
poesia, entendida como uma espécie de língua nova.
Para ele, a característica do verso é a sua originalidade e a poesia produz a língua, porque “articula o inarticulado”. Flusser conclui que a poesia é nesse sentido a “fonte da verdade”. Eis a filosofia do poema. Seu alimento está, naturalmente, na imaginação e na capacidade de ler o mundo com outros olhos: “o pirilampo é a lanterna do poeta”, escreve Ondjaki em um de seus versos. De outros poemas, podem ser pinçados lances poéticos como: “A folha é parede verde / para o sol chegar”; “A despalavreação / pode acrescer de uma vida”; “Encarar o universo com / demasiada intimidade / - a modos que quintal”; “Para ser grilo / há que ter desnoções”.
Vilém Flusser
Para ele, a característica do verso é a sua originalidade e a poesia produz a língua, porque “articula o inarticulado”. Flusser conclui que a poesia é nesse sentido a “fonte da verdade”. Eis a filosofia do poema. Seu alimento está, naturalmente, na imaginação e na capacidade de ler o mundo com outros olhos: “o pirilampo é a lanterna do poeta”, escreve Ondjaki em um de seus versos. De outros poemas, podem ser pinçados lances poéticos como: “A folha é parede verde / para o sol chegar”; “A despalavreação / pode acrescer de uma vida”; “Encarar o universo com / demasiada intimidade / - a modos que quintal”; “Para ser grilo / há que ter desnoções”.
Nos versos de Ondjaki, um galho pode gentificar uma
arve (árvore), um só olhar pode ser uma “voz não dita”, a linha da água pode
ser um espelho para o céu “narcisar-se”; a terra experimenta alturas, e o poeta
pode ter o céu sob seus pés, até porque “nunca é impossível / pisar um chão de
estrelas”; a lágrima é “sensação que escorrega”. Em seu dicionário poético, que
encerra o livro, o autor define a palavra “despalavreação”: “é um ensinamento,
uma desaprendizagem. Um desmomento. E tem outros nomes: guimarães prosa, manoel
de barro, luuandino vieira, mia conto, ou qualquer ser humano que sorria no
gigantesco significado das coisas insignificantes”. Estão aí suas influências,
ou melhor suas afluências, já que tratamos da poetização de seu mundo natural,
ou da naturalização de seu mundo poético.
Para finalizar, uma confissão: não consegui explicar a
poesia de Ondjaki. Nem mesmo entendê-la. Natural. Causo que ela não carece de
explicação ou entendimento. Como dizia Manoel de Barros, mallarmaicamente, ao
comentar em carta os poemas do “camarada angolano”, a “palavra poética não
serve para expressar ideias – serve para cantar, celebrar”. Ou como dizia Cacaso,
“Poesia / Eu não te escrevo / eu te / Vivo / E viva nós”.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, em 24 de novembro de 2018.
2 comentários:
Desculpe-me perguntar por aqui, mas, na colagem do topo do seu blog, o que é a segunda imagem, logo à direita da foto dos beatles?
Wally Salomão, no curta Assaltaram a Gramática, de Ana Magalhães
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