Maria Bethânia é
para mim mais do que uma intérprete. Tal como o vento, é difícil explicá-la.
Até porque, feito uma ventania, Bethânia não carece de explicação. Como um
vendaval, pode-se não gostar dela, mas nenhum abrigo é cem por cento seguro (a
céu aberto é impossível fugir de uma tempestade). E uma hora ou outra é
possível que ela nos encontre os ouvidos e corações abertos. Bethânia não
carece também de entendimento. Apenas é. E se fosse preciso ir além do verbo
ser – na possibilidade de uma caracterização - eu arriscaria dizer que para mim
Bethânia é uma espécie de entidade, dessas que não usam sapatos e flutuam. Não
desejo dessa forma mitificá-la (romancear ao exagero uma pessoa como eu ou você,
de carne e osso), pois isso seria mascarar a realidade e Bethânia é pura
realidade. E pulsa como um texto de Clarice Lispector. Sua voz me soa mágica e
cheia de mistérios, e a impressão que tive ao ouvi-la em Porto Alegre, em 28 de
novembro, no Auditório Araújo Vianna, é de que seu canto preenche os espaços,
ocupa o vazio, aumenta o que nos rodeia. É o que eu disse para a Géssica -
esposa/musa que me acompanhava -, na saída do show. Durante duas horas, ao lado
de Zeca Pagodinho, a voz da cantora – com sua presença imponente e majestosa -
aumentou os espaços, ampliou os sentidos, veludosamente.
Com uma banda
que reunia músicos que trabalham com ambos, os dois artistas entraram juntos no
palco cantando um lindo samba composto por Caetano Veloso, especialmente para a
turnê “De Santo Amaro a Xerém”. A canção, repleta de jogos de palavras, com
seus gingados peculiares, une o universo de ambos os artistas, evocando as suas
comunidades, a saber, Santo Amaro, na Bahia (Bethânia) e Xerém, no Rio de
Janeiro (Zeca Pagodinho): “No alto brilho / um risco raro / que passa do mal ao
bem / por cima formando um aro por baixo / um trilho de trem / de Guadalupe ao
Amparo / de Xerém a Santo Amaro / de Santo Amaro a Xerém (...)”. Na sequência,
“Sonho Meu”, de dona Ivone Lara, embalou o público, assim como a linda “Reconvexo”,
de Caetano, algumas pérolas de Gonzaguinha, “Negue”, de Adelino Moreira e Enzo de Almeida Pessoa, que foi imortalizada por
Ataulfo Alves, entre outras pérolas bem brasileiras que vieram depois. A
plateia delirou. De fato, o show iluminou aquela rio-grandense noite de
quarta-feira.
Leitor, leia a
prosa poética de “Água Viva”, de Clarice Lispector, e lá encontrará a seguinte
frase que talvez ajude a explicar o inexplicável de Bethânia: “Esta é a vida
vista pela vida. Posso não ter sentido mas é a mesma falta de sentido que tem a
veia que pulsa”. Para além de qualquer entendimento, a arte de Bethânia não se
explica porque é corpo e voz postos em movimento (performance), em ação
integradora com os ventos e com a terra. Bethânia é ventania, incontestável.
Eparrei!
Caetano Veloso
observou certa vez que ler Clarice Lispector era como estar diante de uma
pessoa. Penso algo semelhante sobre a célebre filha de Dona Canô e irmã de
Caetano. Ouvir Bethânia é como estar diante de uma pessoa. O que não significa
que essa experiência não tenha um q de sobrenatural. Aliás, Bethânia conta um
episódio curioso sobre seu primeiro encontro com Clarice. No final de um show,
a cantora sai do camarim e se depara com a escritora falando sobre as faíscas
que enxergava em volta dela. Algum tempo depois, ao conhecer a Mãe Menininha do
Gantois, em Salvador, e de reverenciar a Mãe de Santo mais conhecida da Bahia,
Bethânia diz que a célebre matriarca religiosa afirmou ter visto nela as mesmas
faíscas.
Há
um texto no livro “Algo Infiel: Corpo, performance e tradução” (Cultura &
Barbárie, 2017), de Guilherme Gontijo Flores e Rodrigo Tadeu Gonçalves que
trata de um show de Maria Bethânia. No ensaio, um dos autores (Guilherme ou
Rodrigo, não se sabe) escreve que, ao assistir à intérprete cantando os versos
ingênuos de “É o Amor”, com uma potência inesperada, entrou em transe: “Do
transe muito material que a voz de alguém que canta pode produzir em qualquer
um, do transe corpóreo de toda performance”. A canção de Zezé di Camargo &
Luciano, extremamente gasta pela recorrência com que foi veiculada pelas
mídias, numa obsessão sertaneja desenfreada, ganhou outros contornos na voz de
Bethânia. O que prova que a canção é “a abertura por onde o corpo e a voz se
fazem sentido, é o espaço em que a forma se completa sempre a caminho – como na
etimologia de performance – uma
canção só é uma canção quando está num corpo”. E Bethânia canta com o corpo
todo. Nesse sentido, sua voz encorpada (en)canta. Segundo o autor do texto, a
longa carreira de Bethânia, “capaz de transitar entre a suposta elite cultural
e os hits da AM, no decorrer de cinco décadas, é um exemplar precioso da
poética do corpo e da poética no corpo”. Celebremos isso tudo.
Texto publicado inicialmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, em 15 de dezembro de 2018.
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