Em um de seus
poemas mais conhecidos, “A Educação pela Pedra”, o poeta João Cabral de Melo
Neto plasma com maestria aquela que foi uma de suas obsessões literárias, a “fé
desmesurada na beatitude do concreto”, como escreveu o crítico e jornalista
José Castello em um estudo sobre o escritor pernambucano. No versos desse
texto, o escritor valoriza o mundo concreto, racional, material, ou seja, o
oposto de tudo aquilo que ele, de certa forma, abominava, a saber, o elemento
sentimental, confessional, subjetivo, etéreo, vago, e impreciso da vida.
Vejamos: “Uma educação pela pedra: por lições; / para aprender a pedra,
frequentá-la; / captar sua voz inenfática, impessoal / (pela de dicção ela
começa as aulas) (...)”. Cabral evoca a “resistência fria” de tal educação, sua
“carnadura concreta”, sua economia, seu adensamento compacto para teorizar
sobre a própria poesia. Toda a grande poética cabralina parece se concentrar
nessas linhas. Esse poema dá nome a um livro publicado em 1966.
José Castello,
no referido estudo, “João Cabral de Melo Neto: O Homem sem Alma & Diário de
Tudo” (Bertrand Brasil, 2006) - uma espécie de biografia ensaística -, analisa
de forma minuciosa e impressionista a vida e a obra desse poeta do concreto e
da matéria, uma espécie de poeta-engenheiro ou poeta-arquiteto, que foi
incluído na Geração de 45, isso devido a uma aproximação temporal e não
necessariamente estilística. O livro de Castello foi escrito a partir de uma
série de entrevistas realizadas com Cabral entre março de 1991 e abril de 1992,
mas só foi publicado depois da morte do entrevistado. Aliás, em 2019
completam-se vinte anos de sua partida. No ano que vem, comemorar-se-á o
centenário desse que foi até hoje a nossa maior promessa para o prêmio Nobel de
Literatura, formando, na minha opinião, com Carlos Drummond de Andrade e
Vinícius de Morais, a tríade mais importante da poesia brasileira do século XX.
O estudo de
Castello aponta para uma perspectiva de leitura que penso contribuir amplamente
para a fortuna crítica de João Cabral. Falo de uma problematização da questão
central de sua poética, que é uma espécie de negação do imaterial, ou melhor,
um elogio do antilirismo. O poeta parece ser traído por aquilo que mais abominou,
aquele pedaço da vida que nunca conseguimos controlar completamente, falo do
imaterial, que poderia ser traduzido também como o subjetivo, o pessoal, o
sentimental, o anímico, o emocional, o lírico, etc. Daí sua poesia ser uma
espécie antípoda de tudo o que produziu, por exemplo, o apaixonado e
apaixonante Vinícius de Moraes. Tal perspectiva foi responsável por aproximar
seu trabalho da crítica literária, já que a poesia passa a ser um instrumento
ao mesmo tempo de reflexão e de criação. A literatura seria, assim, uma prática
de excelência do pensamento e a atividade poética seria pautada muito mais pelo
trabalho (transpiração) do que pela presença da Musa (inspiração). Parodiando
os versos de Drummond, poderíamos dizer que na poesia cabralina o poema está no
meio da pedra e não a pedra no meio do caminho ou no meio do poema. Aliás,
Drummond foi a primeira grande influência de Cabral na construção de uma arte
desvinculada da tradição romântica e parnasiana que fez seguidores ao longo dos
tempos.
Segundo
Castello, “em Cabral, o apego ao racional tem dimensões irracionais. A razão,
para ele, mais que um método, é uma obsessão. Essa compulsão ao concreto
transparece em toda a sua poesia. O poeta escreve como um náufrago que não pode
se soltar de sua tábua de salvação e que nela concentra toda esperança de
sentido”. Castello, em outro momento, observa que o “homem sem alma é o homem
que foge da alma. E que se torna, assim, seu refém”. Daí talvez uma possível
explicação para a profunda angústia que acompanhou o poeta ao longo de sua
vida, um distúrbio que foi tratado como uma depressão pela medicina, mas que
ele preferia considerar como uma espécie de melancolia. Aliás, o artista, nas
conversas com Castello, diferenciou com detalhes a depressão e a melancolia.
Para piorar tudo, ele sofreu durante décadas de uma dor de cabeça que aniquilou
o seu humor e que só foi resolvida pelos médicos no final de sua vida. A única
explicação médica para o fato estava concentrada em uma possível origem
nervosa.
Autor de clássicos
da nossa literatura como “Pedra do Sono”, “Rio”, “Uma Faca só Lâmina”, “Museu
de Tudo”, “A Escola das Facas”, “O Cão sem Plumas”, “Morte e Vida Severina”
entre outros, Cabral viveu mais no exterior do que no Brasil, tendo em vista
que atuou como diplomata em países como Espanha, Senegal, Inglaterra e Paraguai.
De todos os lugares em que viveu, Andaluzia, sem dúvidas, foi o que mais o
“encantou”, convidando-o à poesia - para não usar a expressão “inspirou”, já
que tratamos de um escritor avesso a qualquer ideia de inspiração. Sevilha
parece ser em sua obra um pedaço de Pernambuco, já que a margem do Capibaribe,
com suas gentes e canaviais, nunca o abandonaram.
O que mais chama
a atenção no livro de José Castello é aquilo que poderia ser erroneamente
considerado como um resto. Refiro-me ao “Diário de Tudo”, que integra a segunda
edição da publicação. Nele, o crítico transcreve um caderno de notas íntimas
que foram escritas à medida que visitava o poeta. Nesse Diário, o leitor trava
contato com detalhes omitidos no estudo crítico, minúcias que dizem respeito à
vida privada de João Cabral, aos poucos compartilhada com o “intruso”
jornalista. A segunda parte da obra, portanto, é uma espécie de making of do
livro. Nele, a partir dos detalhes, é possível entender um pouco mais e melhor
a “secura” que rondou a vida e obra de um dos poetas mais incríveis que já li.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, no dia 02 de março de 2019.
Um comentário:
bom..bom... biscoito fino...bom . muito bom... parabéns...
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