“No Intenso
Agora”, o mais recente filme de João Moreira Salles, faz jus à beleza e profundidade
do cinema deste que é um dos mais importantes documentaristas do Brasil
contemporâneo. Discípulo direto de Eduardo Coutinho, o cineasta já tinha
presenteado o público com belas produções, como “Nelson Freire”, uma
cinebiografia do maior pianista brasileiro, “Notícias de uma Guerra
Particular”, que retrata o cotidiano dos traficantes e moradores de uma favela
carioca, “Entreatos”, no qual o diretor acompanhou a campanha presidencial de
Lula em 2002, e o premiadíssimo “Santiago”, um perfil poético do mordomo da
família Moreira Salles, obra que na minha opinião é uma mais importantes da história
cinematográfica de nosso país.
João Moreira Salles
João Moreira
Salles, em “No Intenso Agora”, parte de vídeos caseiros e anotações realizados
por sua mãe durante uma viagem à China, em 1966, confrontando este episódio com
uma reflexão sobre as manifestações de Maio de 68, na França, bem como passando
brevemente pela Primavera de Praga, e pela Ditadura Brasileira. O que todos
esses acontecimentos têm em comum, além de atravessarem ou serem atravessados
pelo mesmo tempo, é uma questão que vai se delineando ao longo do filme e que
contribui para o seu sentido sem deixar de apelar para a sensibilidade do
espectador em lê-lo de forma particular. Nesse aspecto, vale considerar que a
forma como o filme é montado faz dele um documento não apenas político, mas
também intensamente poético, o que é recorrente na obra de Moreira Salles. O
próprio título aponta para uma das chaves de interpretação da película que é a questão do tempo,
a forma como lidamos com ele, a forma como somos transformados por ele. E ao
assistirmos ao filme fica claro o quão atual ele é. O seu tempo é profundamente
presente assim como o nosso tempo é profundamente político, assim como é
político todo o tempo para todos aqueles que em sua época experimentaram
verdadeiramente o seu tempo.
O filme traz um conjunto de registros cinematográficos históricos. Das utopias de
Maio de 68, movimento encabeçado por estudantes franceses, até a melancólica
constatação de que aquele levante reproduziu as tradicionais estruturas de
poder (negros e mulheres, por exemplo, eram, infelizmente, personagens secundárias
naquela luta); do engajamento dos operários nas manifestações parisienses e
outras cidades da Europa até o fim trágico de jovens como Gilles Tautin e
Pierre Beylot; dos ânimos que moveram a Primavera de Praga, que marcou um
período de libertação política na Tchecoslováquia durante a dominação Soviética
até a autoimolação de Jan Palach, que cometeu suicídio como forma de protesto
político naquele país; do entusiasmo militar no Brasil dos anos 60 até a morte
do estudante secundarista Edson Luis, assassinado por militares em 1968, no
centro do Rio de Janeiro. Todos esses episódios percorrem “No Intenso Agora”
como a sinalizar os espectadores para incêndios futuros. E se esses
acontecimentos estão no filme é porque alguém os registrou. Eles estão na história.
Em um momento da obra, o cineasta observa que essas imagens existem porque a
liberdade de expressão não acabou de um dia para a noite. À medida que isso
acontecia aumentava a sensação de urgência, enquanto ainda era possível o
registro, o testemunho. O filme, nesse sentido, acaba refletindo também sobre
os usos políticos das imagens. É uma de suas contribuições.
A milhares de
quilômetros da França, da Tchecoslováquia, ou do Brasil, a mãe de João Moreira
Salles, na China de Mao e da Revolução Cultural, encontrava um mundo muito
diferente do seu. Deparou-se com o inesperado, com muitos homens e mulheres,
camponeses, operários, ferroviários, enfim, com experiências de vida diferentes
da sua. Fico pensando na imensa semelhança entre os diários e registros de vídeo
da mãe do cineasta com os “Cadernos da Viagem à China”, de Roland Barthes, que
esteve lá alguns anos depois, em 1974. Barthes encontra no país a preclusão da
sensualidade, os cortes de cabelo codificados, a abolição do erotismo, as caligrafias
bonitas, o excesso de organização, a ausência de incidentes. Há em seus
cadernos um grande número de enumerações, fartas descrições como que a compor
séries fotográficas, como por exemplo: “Cinema. Granizo. Balcão. Primeira
fileira. Muito Grande. Povaréu. Granizo” e “Farmácia chinesa. Mil gavetas
antigas. Cheiro. Pequena balança”.
Barthes desenha Confúcio em seus Cadernos de Viagem
Barthes e Julia Kristeva na China
Barthes e o grupo Tel Quel na China
Barthes parece ver o país de forma mais
negativa, a ponto de confessar – devido ao malogro da viagem - que não tem
muito o que anotar, o que contrasta de fato com tudo o que anotou. Ele reclama
constantemente de enxaquecas, o que talvez tenha lhe tirado o ânimo da escrita.
A mãe de João Moreira Salles, por sua vez, se entusiasma com a viagem. Para
ela, a China é muito mais interessante que o Japão, ao contrário de Barthes,
que o considera mais inspirador. No entanto, em suas diferentes
visões sobre a China, coisas parecidas lhes chamam a atenção, como o coral de
meninas dançando e cantando músicas patrióticas (os dois reparam em seus dedos),
ambos analisam com atenção os cartazes com dizeres políticos que se espalham
pela cidade, ambos visitam localidades semelhantes, monumentos e palácios, ambos
escrevem sobre a Cidade Proibida e a Grande Muralha da China.
Elisa Gonçalves, mãe de João Moreira Salles
O balé feminino chinês
Se para Alberto
Moravia a Muralha lhe sugere uma serpente, para a mãe do cineasta, a gigantesca edificação se parece com um
grande rio. Barthes, por sua vez, apenas descreve o ambiente: “Nublado, frio,
glacial mesmo. Muita gente indo e vindo. A montanha ao redor é pelada”. Se a
imagem de Moravia aponta para um aspecto selvagem e violento, caracterizado pela
serpente, e a descrição de Barthes para a frieza, a associação da mãe, por sua
vez, aponta para o tempo, como um rio a fluir lento e constante. Em ambos os
lugares, no Oriente e no Ocidente, na China ou na França, Tchecoslováquia ou
Brasil, um mundo lutando contra o tempo, mas vivendo-o intensamente no agora.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 23 de fevereiro de 2018
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