sábado, 23 de fevereiro de 2019

Política e Poesia no cinema: uma reflexão sobre o filme “No Intenso Agora”, de João Moreira Salles




“No Intenso Agora”, o mais recente filme de João Moreira Salles, faz jus à beleza e profundidade do cinema deste que é um dos mais importantes documentaristas do Brasil contemporâneo. Discípulo direto de Eduardo Coutinho, o cineasta já tinha presenteado o público com belas produções, como “Nelson Freire”, uma cinebiografia do maior pianista brasileiro, “Notícias de uma Guerra Particular”, que retrata o cotidiano dos traficantes e moradores de uma favela carioca, “Entreatos”, no qual o diretor acompanhou a campanha presidencial de Lula em 2002, e o premiadíssimo “Santiago”, um perfil poético do mordomo da família Moreira Salles, obra que na minha opinião é uma mais importantes da história cinematográfica de nosso país.

João Moreira Salles

João Moreira Salles, em “No Intenso Agora”, parte de vídeos caseiros e anotações realizados por sua mãe durante uma viagem à China, em 1966, confrontando este episódio com uma reflexão sobre as manifestações de Maio de 68, na França, bem como passando brevemente pela Primavera de Praga, e pela Ditadura Brasileira. O que todos esses acontecimentos têm em comum, além de atravessarem ou serem atravessados pelo mesmo tempo, é uma questão que vai se delineando ao longo do filme e que contribui para o seu sentido sem deixar de apelar para a sensibilidade do espectador em lê-lo de forma particular. Nesse aspecto, vale considerar que a forma como o filme é montado faz dele um documento não apenas político, mas também intensamente poético, o que é recorrente na obra de Moreira Salles. O próprio título aponta para uma das chaves de interpretação da película que é a questão do tempo, a forma como lidamos com ele, a forma como somos transformados por ele. E ao assistirmos ao filme fica claro o quão atual ele é. O seu tempo é profundamente presente assim como o nosso tempo é profundamente político, assim como é político todo o tempo para todos aqueles que em sua época experimentaram verdadeiramente o seu tempo.


O filme traz um conjunto de registros cinematográficos históricos. Das utopias de Maio de 68, movimento encabeçado por estudantes franceses, até a melancólica constatação de que aquele levante reproduziu as tradicionais estruturas de poder (negros e mulheres, por exemplo, eram, infelizmente, personagens secundárias naquela luta); do engajamento dos operários nas manifestações parisienses e outras cidades da Europa até o fim trágico de jovens como Gilles Tautin e Pierre Beylot; dos ânimos que moveram a Primavera de Praga, que marcou um período de libertação política na Tchecoslováquia durante a dominação Soviética até a autoimolação de Jan Palach, que cometeu suicídio como forma de protesto político naquele país; do entusiasmo militar no Brasil dos anos 60 até a morte do estudante secundarista Edson Luis, assassinado por militares em 1968, no centro do Rio de Janeiro. Todos esses episódios percorrem “No Intenso Agora” como a sinalizar os espectadores para incêndios futuros. E se esses acontecimentos estão no filme é porque alguém os registrou. Eles estão na história. Em um momento da obra, o cineasta observa que essas imagens existem porque a liberdade de expressão não acabou de um dia para a noite. À medida que isso acontecia aumentava a sensação de urgência, enquanto ainda era possível o registro, o testemunho. O filme, nesse sentido, acaba refletindo também sobre os usos políticos das imagens. É uma de suas contribuições.




A milhares de quilômetros da França, da Tchecoslováquia, ou do Brasil, a mãe de João Moreira Salles, na China de Mao e da Revolução Cultural, encontrava um mundo muito diferente do seu. Deparou-se com o inesperado, com muitos homens e mulheres, camponeses, operários, ferroviários, enfim, com experiências de vida diferentes da sua. Fico pensando na imensa semelhança entre os diários e registros de vídeo da mãe do cineasta com os “Cadernos da Viagem à China”, de Roland Barthes, que esteve lá alguns anos depois, em 1974. Barthes encontra no país a preclusão da sensualidade, os cortes de cabelo codificados, a abolição do erotismo, as caligrafias bonitas, o excesso de organização, a ausência de incidentes. Há em seus cadernos um grande número de enumerações, fartas descrições como que a compor séries fotográficas, como por exemplo: “Cinema. Granizo. Balcão. Primeira fileira. Muito Grande. Povaréu. Granizo” e “Farmácia chinesa. Mil gavetas antigas. Cheiro. Pequena balança”. 

Barthes desenha Confúcio em seus Cadernos de Viagem

Barthes e Julia Kristeva na China

Barthes e o grupo Tel Quel na China

Barthes parece ver o país de forma mais negativa, a ponto de confessar – devido ao malogro da viagem - que não tem muito o que anotar, o que contrasta de fato com tudo o que anotou. Ele reclama constantemente de enxaquecas, o que talvez tenha lhe tirado o ânimo da escrita. A mãe de João Moreira Salles, por sua vez, se entusiasma com a viagem. Para ela, a China é muito mais interessante que o Japão, ao contrário de Barthes, que o considera mais inspirador. No entanto, em suas diferentes visões sobre a China, coisas parecidas lhes chamam a atenção, como o coral de meninas dançando e cantando músicas patrióticas (os dois reparam em seus dedos), ambos analisam com atenção os cartazes com dizeres políticos que se espalham pela cidade, ambos visitam localidades semelhantes, monumentos e palácios, ambos escrevem sobre a Cidade Proibida e a Grande Muralha da China.

Elisa Gonçalves, mãe de João Moreira Salles

O balé feminino chinês


Se para Alberto Moravia a Muralha lhe sugere uma serpente, para a mãe do cineasta, a gigantesca edificação se parece com um grande rio. Barthes, por sua vez, apenas descreve o ambiente: “Nublado, frio, glacial mesmo. Muita gente indo e vindo. A montanha ao redor é pelada”. Se a imagem de Moravia aponta para um aspecto selvagem e violento, caracterizado pela serpente, e a descrição de Barthes para a frieza, a associação da mãe, por sua vez, aponta para o tempo, como um rio a fluir lento e constante. Em ambos os lugares, no Oriente e no Ocidente, na China ou na França, Tchecoslováquia ou Brasil, um mundo lutando contra o tempo, mas vivendo-o intensamente no agora.

Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória (PR), no dia 23 de fevereiro de 2018

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