terça-feira, 23 de dezembro de 2008

AMANDO O SÉCULO XIX NEM SEI SE COM CARÍCIAS:
O IDO E O VIVIDO COMO SEMENTE DO PRESENTE, OU MESMO VICE-VERSA



Em agosto de 2004, numa entrevista ao jornal Rascunho, Wilson Bueno afirmou que com o livro Amar-te a ti nem sei se com carícias, lançado naquele ano, pretendeu se aventurar pela lentidão do final do século XIX e início do XX justamente para inventariar o ido e o vivido e assim lançar uma ampla visada a este “nosso mais que aflitivo início do terceiro milênio”. No livro, um dos mais criativos escritores contemporâneos do Paraná, além de recriar o ambiente carioca dos tempos de Machado e da transição da Monarquia para a República, faz aquilo que poucos literatos têm coragem para fazer: um amplo mergulho na linguagem. Isso não significa que Wilson Bueno reconstitui apenas o vocabulário da época. O mergulho é mais profundo. Ele reconstrói um certo ritmo, uma cadência sugestiva, por meio de um manejo magistral na sintaxe da época. Nesse sentido, Bueno poderia ser considerado um exímio pesquisador da língua. Algo semelhante ele já havia feito em Mar Paraguayo, belíssimo livro que tive o prazer de ler em 2008. Nele, o autor desenvolve uma hibridização entre a língua portuguesa, espanhola e guarani. Tal mistura, pungente na fronteira entre o Paraná e o Paraguai, incitou Bueno a “dar uma resposta estética ao histórico isolamento em que se encontram submergidas as línguas do continente hispano-americano”, segundo o próprio autor. E agora que acabo de ler Amar-te a si nem sei se com carícias, sinto necessário anotar aqui alguns apontamentos de leitura. Numa espécie de prólogo, o escritor afirma ter encontrado um manuscrito na demolição de uma aristocrática casa no bairro de Botafogo. Um legítimo manuscrito do final do século XIX que retrata memórias do narrador situadas entre 1850 e 1914, aproximadamente, e que trazia como assinatura apenas duas iniciais: L. P. Escrito provavelmente por Leocádio Prata. Mas é justamente aí que o grande jogo, proposto por Bueno, inicia. A começar pelas duas outras grandes personagens que compõe o enredo: Lavínia Prata, esposa do “possível” narrador, e Licurgo Pontes, conhecido de Leocádio e “possível” amante de Lavínia. Triângulo amoroso escrito à maneira de Machado de Assis, a quem se atribui a epígrafe do livro, extraída de Dom Casmurro: “O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado”. Aliás, Machado poderia servir de pano de fundo para a nossa leitura do livro, não apenas pela presença de capítulos curtos, à maneira de um de seus guias, Xavier de Maistre, mas porque, em vários momentos, o narrador interpela o leitor, mesmo defendendo a idéia de que nunca haverá tal leitor, pois o manuscrito seria queimado logo após a sua conclusão. Quem já leu Machado sabe que tais vocativos não são despropositais. O jogo proposto por Bueno se dá por criar uma narrativa cujo autor é tão incerto quanto o próprio século XIX. Não sabemos por qual L.P. o texto foi escrito. E mesmo sendo escrito por Leocádio Prata, o livro bem poderia ter sido corrigido por Licurgo Pontes, ou Lavínia Prata. Cada um retratando-se aos olhos de Leocádio da maneira como bem quisesse. De maneira que todas as memórias que compõe a narrativa devem ser tomadas como uma ficção que não sabemos de onde vem. Os acontecimentos bem poderiam ter sido recriados por cada um dos três. Cabe ao leitor optar por um caminho, mesmo sabendo que tal caminho pode ser inútil, talvez não nos levando a lugar algum, tal como os mistérios da dissimulada Capitu.

Atente-se para o fato de que no livro, há certo exagero no uso de determinados termos que já não eram comuns na literatura do final do século XIX. Mas isso é proposital, afinal de contas, pelo que parece, o escritor não pretende reconstituir o tempo e a língua como um historiador, ou um filólogo, mas sim criar um certo “clima do séc. XIX”, que não deixa de ser também caricatural. Assim, o livro passa a ser não só sobre o século XIX, mas também sobre o século XX, sua transição para o XXI, o nosso tempo, o que fundamenta o argumento de Bueno apresentado no início do texto: “lançar uma ampla visada a este nosso mais que aflitivo início do terceiro milênio”. O que se mostra, então, na narrativa, é um tempo dúbio, para usar uma expressão do narrador do livro: “Ora, ora – os tempos são dúbios e é deles a inconseqüente matéria com que nos agarramos, filhos diletos do século XIX”. Ainda na entrevista concedida ao jornal Rascunho, Bueno esclarece a questão: “Por mais que eu, um autor do século 21, intente reproduzir, digamos, a linguagem dos oitocentos, estarei invariavelmente traindo esta mesma linguagem, introduzindo, queira ou não, a dicção de meu tempo. (...)”. Se tomarmos a afirmação ao pé da letra, concluiríamos que o tempo e a língua formam a matéria do escritor. Mais importante que a “história-estória”, propriamente dita, é a maneira como Bueno opera a linguagem em sua literatura, sem desconsiderar a interpenetração de tempos e línguas – o que poderia enquadrá-lo numa estética neo-barroca (perdão,não gosto muito do termo!) - numa proposta literária. Isso,a meu ver, não é pouca coisa.

c.moreira

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