quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

TABLEAU PARA VALÊNCIO


Hoje à tarde, quando decidi escrever sobre o Valêncio Xavier, que partiu na semana passada, perguntei para mim mesmo: “Por que sinto tanta necessidade de escrever sobre as pessoas que amo justamente quando elas vão embora?”. Mas, pensando bem, não é a primeira vez que escrevo sobre ele. Imagino que de tudo o que escrevemos sempre fica algo a ser dito, algo que nos escapa, ou mesmo algo a repetir, pois tudo aquilo que se repete, ao mesmo tempo que traz de volta algo que já parecia perdido, traz um pouco daquilo que ficou a ser dito. Preciso contar uma rápida história. No primeiro semestre, que passei em Florianópolis, perdi – ou ganhei, não sei dizer – várias tardes em torno de Valêncio. Não, ele não estava em Florianópolis. Mas a sua presença se impunha dentro de uma biblioteca. Descobri no acervo da UFSC a estranha biografia que Valêncio escreveu sobre Poty. Descobri também uma pesquisa que trazia todas, ou quase todas, as matérias que ele escreveu para a Gazeta do Povo. Que delícia essa descoberta. Passei muitos dias lendo seus textos enquanto deveria estar imerso nos simbolistas. No entanto, curiosamente, estabeleci muitas relações entre as duas coisas. Mas não falarei disso agora, pois estou tomado de um luto feroz. Poucas vezes lamentei tanto a morte de um artista – falo artista porque Valêncio não era apenas um escritor. Não cheguei a chorar como chorei com um amigo e com duas dúzias de cerveja a morte de George Harrisson (TAMBÉM PERDEMOS JAMELÃO). Mister Xavier acharia extremamente careta da minha parte. Mas lamento profundamente, pois Valêncio era um artista notável, que ainda produzia muito, apesar de doente, além de ser uma pessoa muito querida pelos amigos e familiares. Tentei algumas vezes, todas em vão, entrar em contato com o escritor com o pretexto de adquirir uma cópia de uma crítica que escreveu sobre o Agora é que são elas, do Leminski, num pequeno jornal paranaense, na década de 80. Mas acho que no fundo era apenas para conhecê-lo. Ouvi-lo falar apaixonadamente sobre cinema e literatura. Guardo um raro exemplar de A propósito de figurinhas, autografado por ele e por Poty. Nunca liguei para edições autografadas, são fetiches que para mim não fazem sentido. Mas guardo com carinho, como um neto que guarda o canivete do avô, para sempre lembrar que teve um avô. Há alguns meses, escrevi um artigo em que lia os ready-mades do livro das figurinhas como construções da memória, um arquivo de assombros: Valêncio, feito Baudelaire, sempre foi um bom trapeiro. Em seu último livro, o escritor se apropria de uma reportagem do programa Aqui Agora para escrever um conto sobre uma menina morta nua. Mas seus textos que mais me fascinam são aqueles que reconstroem, ou melhor, reinventam um tempo há muito perdido, como Maciste no inferno, em que conta ao mesmo tempo, magistralmente, duas histórias, a do filme que é projetado na tela do cinema e a de um telespectador. O livro me faz lembrar de Pathé-Baby, do Alcântara Machado, que é contado também a partir de fotogramas de um filme de cinema mudo. Aliás, Valêncio escreveu na antiga Cult um artigo sobre esse livro de 1926, uma proposta bastante inusitada e diferente de outras propostas modernistas. Eu queria homenageá-lo nesse texto, mas me faltam palavras e imagens. Talvez bastasse uma colagem de suas fotos, como faz aquele projetor de cinema, em Cine Paradiso. Eu, pequeno como Totó, correria para o cinema para assistir Valêncio e suas histórias. Ele sairia da tela e trocaria figurinhas das balas Zequinha comigo. Espiaríamos a mãe no banheiro, choraríamos a mãe morrendo, tal como Flávio de Carvalho desenhou, contrataríamos uma prostituta japonesa, nos perderíamos bêbados no labirinto do Minotauro, fugiríamos do fantasma de Curitiba, aquele estranho monstro da madrugada, ficaríamos seduzidos pelas musas do cinema pornô paranaense, e abriríamos a porta e apagaríamos aquela vela que se esconde por trás dela e, afoitos, revelaríamos os mistérios do mágico. E tudo seria cinema. A morte apenas uma ficção. Eu encontraria o Valêncio dois dias depois e ele desabafaria: “Estou com as costas doloridas, pois caí de mal jeito depois de ser metralhado e morto por James Lilibrown, o gângster”. “Preciso tirar umas férias e terminar o meu novo livro”. Valêncio sonhava filmar a visita de Che Guevara a Curitiba. O filme começaria com um close-up no pênis de Che, mijando no banheiro da rodoviária. Só Valêncio mesmo!

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