segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A VOLTA AO DIA EM 80 CORTÁZARES

Tenho para mim que títulos de textos e livros sempre dizem muito sobre seus escritores. Revelam, muitas vezes pelo avesso do que dizem, pelas beiradas, algumas margens de indecisão, posições, perspectivas, toques, sussurros e dicas sobre aquele a quem não temos acesso, senão pela mão de um fantasma maligno. Manoel Carlos Karam, por exemplo, sempre foi ótimo em títulos: Comendo bolacha Maria no dia de São Nunca, Pescoço ladeado por parafusos, ou simplesmente Cebola, não menos original, como Encrenca. Muitas vezes, o mais simples revela o mais complexo, assim como um universo pode caber numa simples cabeça de alfinete: Metamorfose, O estrangeiro, A Náusea, O castelo, A Montanha Mágica. Com títulos, Julio Verne foi capaz de evidenciar sua imaginação, convidando o leitor a viajar com ele pela lua, pelo mundo num balão, pelo centro da terra. A partir de A volta ao mundo em 80 dias, Julio Cortázar, esse enormíssimo cronópio, elabora A volta ao dia em 80 mundos. Em ambos, a viagem. Que há em comum? O extraordinário. O título parodiado por Cortázar explicita uma das noções básicas da literatura para o mais francês dos argentinos nascido em Bruxelas (esse fato causa uma mescla de surpresa, riso e estranhamento: creio que los hermanos, no fundo, nunca perdoarão o mago de O Bestiário por isso. Argentino é só quem nasce na Argentina? E o filho dos astronautas, que veio ao mundo, ou melhor, à lua em uma estação espacial? É humano aquilo que não nasce na terra?)

O título, de certa forma, nos revela o que é a própria literatura, para Cortázar: Vários mundos em um. A literatura como criação de novas e mágicas passagens,outras realidades. Novo sistema do pensamento que pode ser encontrado no mais cotidiano e banal dos acontecimentos. Ou não seria assim, o sobrevôo de uma mosca, que espevitada invade nosso quarto, a guiar-nos os olhos com espanto pelo gesto quase vazio de suas asas, ou o miado macabro de nosso gato preto escondido dentro da parede, prenhe de mistérios e vinganças – poderíamos chamá-lo de Theodoro Adorno, sim, por que não? O louco Gregório, não o papa, mas a barata limpando seu corpo depois de retornar do inferno, o escritório em que Kafka batia cartão.

Em 1967, Cortázar reuniu vários textos, muitos dos quais já publicados em livros, jornais e revistas. São contos, ensaios, poemas, frases, fotos, sustos, lembranças, assombros, ocasiões, encontros; e montou o que poderia ser reconhecido hoje como um projeto precursor dos atuais blogs, ou mesmo a literatura visual que foi amplamente valorizada no final do XX e início do XXI. É claro que nem todos os blogueiros escrevem com a força de um Cortázar, nem todos são bruxos, o que fazer? No entanto, todos, por mais fracos que possamos ser, cedo ou tarde, acordamos de madrugada soluçando e sorrindo assustados e nos descobrimos um pouco Cortázar. Somos estrangeiros no próprio país, desde que optamos por perder tempo nesse puro gasto (dispêndio) que é escrever sem eira, nem beira, por puro deleite, como quem joga uma bela pelada no sábado à tarde, e continua jogando durante quase todos os dias durante a semana. Não temo mais que isso não nos leve a lugar algum. Mas voltando aos idos de 60, década muito significativa, não apenas para a América Latina, mas para todo o mundo (veja A sociedade do espetáculo, de Guy Debord). Foi nessa mesma época que esse cronópio maluco - falo de Julio Cortázar - inventou uma estranha máquina capaz de nos levar aos 80 mundos que se escondem sob a capa de um só dia.

Mas vamos ao mundo, ou melhor, aos mundos. O livro foi composto em parceria com ilustrador Julio Dias, outro cronópio que tem como primeira letra de seu nome um J, como Cortázar, como Verne, como Cristo, como Lennon, como Hendrix, como Joplin. A lista é grande. Será obra do acaso? Agora nos chega a publicação, em dois tomos, que ganhou tradução para o português, juntamente com O último round, carinhosamente preparada por Ari Roitman e Paulina Wacht. O trabalho, lançado pela Civilização Brasileira, procurou reconstruir o cenário de textos e ilustrações, tal como o próprio Cortázar tinha organizado, na década de 60.

Louvores para um belíssimo ensaio, talvez o maior do livro, sobre Lezama Lima, etrusco de la Havana vieja, por quem Cortázar nutria uma extensa admiração, tão grande quanto o número de páginas de Paradiso. O argentino nascido em Bruxelas sabia muito bem do potencial das associações. Com magistral capacidade de inventar os próprios escritores que admirava, reuniu Verne e Lezama num universo cósmico e telúrico onde se faz alquimia com palavras. Fala de Paradiso: “E por que subitamente Jules Verne num livro em que nada parece evocá-lo? Mas é claro que evoca; para começar, não é o próprio Lezama que fala das vivências oblíquas, não foi ele quem disse em algum lugar que é como se o homem, evidentemente sem sabê-lo, ao girar o interruptor do seu quarto inaugurasse uma cachoeira em Ontário?”.

Nem todos os textos fazem uma referência direta ao autor de Cinco semanas em um balão, todavia ele esta lá, mesmo que escondido por traz de uma ou outra diabrura capaz de ser suscitada apenas por uma literatura fantástica – tomo o sentido literal da palavra (apesar de não acreditar na existência de tal sentido - imagino que a única coisa literal que existe no mundo é o nascer e o morrer). Isso porque Cortázar, mesmo falando de Thelonious Monk, Carlos Gardel, Louis enormíssimo cronópio, ou das crianças de Calcutá, ou do sol de Saigon, ou de Jack, o estripador, está viajando com Philleas Fogg. Nesse sentido, talvez fosse necessário reler A volta ao mundo em 80 dias, não para encontrar Verne ou Cortázar, mas para entender que uma volta ao mundo ainda é muito pouco. É possível surpreender os olhos com a seguinte descoberta: Viajo sem sair do quarto, como Xavier de Maistre, ou mesmo aquele jornalista de Rear Window a espiar curioso seu vizinho, assassino em potencial. O título não poderia ser melhor. Melhor que o título só os 80 mundos em que o mais francês dos argentinos nascido em Bruxelas mergulha para uma viagem sem medo de não voltar.

c.moreira

Um comentário:

IVONE BENGOCHEA disse...

Gostei muito do seu blog. Adoro poesia, literatura. Sou fã do Cortazar. Ivone
www.pensareedu.com