terça-feira, 9 de dezembro de 2008

DIGA-ME O QUE VÊS E TE DIREI QUEM ÉS



Escrevo este texto tocado pela leitura do post do Luisandro M. De Sousa - http://beatbossa.blogspot.com/2008/11/blindness.html - sobre o filme Ensaio sobre a Cegueira, do Fernando Meirelles, inspirado no livro do Saramago. Diz o Luisandro: “Senti que faltou um pouco da densidade que os diálogos têm no livro, minha impressão é que se fala muito pouco no filme, é um filme que valoriza o visual, é um filme pra ver, não para ouvir”. É o que pensei. Quase um paradoxo o fato de um livro como esse migrar para um cinema que prioriza o visual, já que ver não é tão importante quanto DAR A VER, como diria João Cabral de Melo Neto, que aliás, sofreu com a cegueira. J. L. Borges soube muito bem disso, tanto é que louvou a própria cegueira. Outro escritor que no fim da vida parou de ver, mas não de enxergar foi o Padre Antonio Vieira, que por sinal, alimentou uma obsessão pela metáfora do VER em vários de seus sermões. O tema da cegueira é uma constante na literatura portuguesa. Basta lembrar que reaparece quatro séculos depois do nascimento do imperador da língua portuguesa, como Fernando Pessoa chamaria Vieira. Falo do livro A Eternidade e o Desejo, de Inês Pedrosa, que recria Vieira, nos olhos de uma professora cega apaixonada por sua obra, a partir da leitura do Sermão de Nossa Senhora do Ó, um dos meus prediletos.
Faz uns 5 anos que li o livro do Saramago. Provocou em mim um choque semelhante ao que causou Kafka, em Metamorfose. Lembro que uma vez emprestei o livro a uma aluna, que se apaixonou pela literatura, e confessou que depois de ler o livro, começou a temer apagar a luz do quarto antes de dormir. Tenho certeza que se tivesse assistido ao filme antes não teria tido a mesma impressão. Lembro que uma das coisas que pensei na época foi na impossibilidade de uma adaptação de qualquer livro desse escritor português, sem que se perca um pouco ou muito, isso depende da VISÃO de cada um. Por isso achei perfeito o nome escolhido por Meirelles: BLINDNESS. O filme é outra coisa. Não é Saramago. Talvez por isso o único Nobel português tenha gostado tanto, já que qualquer tentativa de copiá-lo seria fada de imediato ao fracasso. E profanar o livro deve ser também um dos objetivos de uma adaptação (profanação). Pior cego é aquele que só quer ver o filme. Por isso gostei tanto.
O leitor que não vá ao cinema pensando em comparar as coisas, pois são bem distintas, com exceção da história ser a mesma, o que não quer dizer quase nada.
De todas as passagens do livro, para mim, a mais impressionante é aquela em que a mulher do médico se depara com uma igreja onde os santos estão com os olhos vendados. Impossível VER isso no filme (apesar de que a cena aparece), senão DANDO-A a VER, como no livro:
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“(...) não podia ser verdade o que os olhos lhe mostravam, aquele homem
pregado na cruz com uma venda branca a tapar-lhe os olhos, e ao lado uma
mulher com o coração trespassado por sete espadas e os olhos também tapados
por uma venda branca, e não eram só este homem e esta mulher que assim
estavam, todas as imagens da igreja tinham os olhos vendados (...) Não me
acreditarás se eu te disser o que tenho diante de mim, todas as imagens da igreja
estão com os olhos vendados (...) pode ter sido o próprio sacerdote daqui, talvez
tenha pensado justamente que uma vez que os cegos não poderiam ver as
imagens, também as imagens deveriam deixar de ver os cegos, As imagens não
vêem, Engano teu, as imagens vêem com os olhos que as vêem”.
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Mas o que quero dizer para finalizar é que o filme, para mim, é ótimo. No que é possível ver e fazer, com a lente da câmera como uma prótese do nosso próprio olhar, Meirelles tocou com presteza os olhos do livro de Saramago. O que vemos no livro e não vemos no filme pode ser um sintoma de uma profanação, ou mesmo de uma inquietação do VER, que, às vezes, só um livro traz.

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