Talvez fosse possível imaginar uma
poética do ensaio a partir de uma visita imaginária a uma exposição de quadros
de Ismael Nery. Murilo Mendes, em um depoimento sobre o pintor, escreveu que
certa vez o artista lhe contara que, desde cedo, interessara-se pelo trabalho
de Cremona, o pintor italiano dos namorados. Ao longo de sua vida, Nery pintou
muitos quadros, e esboçou desenhos com o motivo dos amantes. Penso se esses
quadros não poderiam nos convidar a pensar o ensaio como o lugar onde se dá o
idílio entre dois apaixonados. De um lado o ensaio é passeio, do outro é o
encontro amoroso entre a crítica e a poesia. Os dois corpos em um mesmo plano.
Os amantes olham fixamente um para o outro como que intuindo a relação prestes
a se concretizar em um beijo.
QUADRO 2
O ensaio
poderia ser pensado como o retrato de um beijo tímido, mas não menos
voluptuoso, entre a crítica e a poesia, encarnadas no quadro
"Namorados", de Ismael Nery. O corpo de um personagem completa o
corpo do outro. O beijo, oficialmente impossível no espaço bidimensional do
quadro, porém verossímil, se realiza poeticamente no ensaio, consumindo as
fronteiras espaciais e precisas que antes delimitavam os amantes e interditavam
o toque dos lábios. O beijo sela o contato e rompe a cisão que antes separava o
conhecimento de um e o gozo do outro.
QUADRO 3
Amor é sempre ensaio ou será ele a prática de uma escrita
amorosa onde a crítica está encantada pela alegria enquanto o poema está
apaixonado pelo saber? O corpo dele preenche o corpo dela, enquanto ela, morada
ou estância, reveste com a sabedoria dos astros, o corpo do ser amado. Para
Agamben, o que fica fechado na "estância" da crítica é nada, mas esse
nada contém a inapreensibilidade como "o seu bem mais poderoso". Amor
é sempre um enigma. O ensaísmo entendido
como prática erótica ou como a fala de uma pessoa apaixonada. Nesse sentido, o
ensaísta pode ser apontado como amador, não necessariamente como alguém que não
sabe o que fala, mas que não descola a sua escrita de seu objeto de desejo,
seja para dele falar bem ou mal. Talvez possamos aprender com Derrida que não
há fundo na escritura, mas apenas escrita sobre escrita. A crítica não pode
pretender encontrar o fundo da obra, "pois esse fundo é o próprio sujeito,
isto é, uma ausência", ensaiou Barthes.
Um comentário:
Por acaso você sabe me dizer quando foi feita a pintura do quadro 1, de Ismael Nery?
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