Anjo acordando o profeta ELIAS
Óleo sobre tela de Juan Antonio de Frias e Escalante
século XVII, Berlim, Alemanha
Há
um ensaio de Giorgio Agamben que pode nos ajudar a pensar a crítica
contemporânea e a sua relação com a tradição da crítica moderna. O texto
intitula-se "Criação e Salvação". Nele, o filósofo italiano, pensando
no precoce desaparecimento dos profetas na história do Ocidente, lembra que a
tradição rabínica tende a encerrar o profetismo num passado ideal, que remonta
à primeira destruição do Templo em 587 a.C. Com a morte do último nabi, o sopro sagrado afasta-se de
Israel, no entanto, as "mensagens celestes" chegam aos homens através
de bat kol, a "filha da
voz", isto é, a tradição oral e o trabalho de leitura e interpretação da Torah. Para o cristianismo, uma vez que
o "messias" veio à terra, os profetas perdem a sua razão de ser. Os
enviados são, agora, apóstolos e não mais profetas.
Agamben
chama a atenção para o fato de a tradição islâmica ligar a figura e a função do
profeta a uma das duas obras ou ações de Deus. Para esta doutrina, há em Deus
duas práxis diferentes: a obra de criação e a obra de salvação. Os profetas
seriam mediadores da obra de salvação e os anjos da obra de criação.
Curiosamente, ao contrário do que se poderia supor, a obra de salvação é
entendida como anterior à de criação. Como a primeira obra - a de salvação -, é
mais importante que a segunda - a de criação -, os profetas seriam mais
importantes que os anjos, pois é a sua obra que torna compreensível a criação,
dando-lhe sentido: "Maravilhoso é que a redenção do criado tenha sido
confiada, não ao criador (ou aos anjos, que procedem diretamente do poder
criador) mas a uma criatura". Isso significa que "não será o poder
angelical (e em outras palavras, demoníaco) com que os homens produzem as suas
obras,(...) mas o que lhes compete, mais humilde e corpóreo, enquanto
criaturas, que salvará o mundo". Significa também que, no profeta,
"os dois poderes de certo modo coincidem, que o titular da obra da
salvação pertence, quanto ao seu ser, à criação".
Essas
ações não estão trancafiadas em um passado remoto. Para Agamben, na cultura da
época moderna, a filosofia e a crítica herdaram a obra profética da salvação,
enquanto que a poesia, a técnica e a arte, herdaram a obra angélica da criação.
Com a secularização da tradição religiosa, ambas perderam progressivamente a
memória da relação que as ligava:
Onde, outrora, o
poeta sabia dar conta da sua poesia ("Abri-la pela prosa" [Aprirla
per prosa], dizia Dante) e o crítico era também poeta, o crítico, que perdeu a
obra da criação, vinga-se sobre esta pretendendo julgá-la; o poeta, que já não
sabe salvar a sua obra, compensa esta incapacidade entregando-se cegamente à frivolidade
do anjo.
Dando
um passo adiante nessa discussão, poderíamos pensar na crítica e na poesia como
"dois rostos de um mesmo poder divino". Seguindo os argumentos de
Agamben, poderíamos também considerar que a obra de criação é centelha que se
soltou da obra profética, assim como a obra de salvação é "só um fragmento
da criação angélica que se tornou consciente de si próprio".
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