segunda-feira, 14 de abril de 2014

Criação e Salvação


Anjo acordando o profeta ELIAS 


Óleo sobre tela de Juan Antonio de Frias e Escalante 
século XVII,  Berlim, Alemanha


Há um ensaio de Giorgio Agamben que pode nos ajudar a pensar a crítica contemporânea e a sua relação com a tradição da crítica moderna. O texto intitula-se "Criação e Salvação". Nele, o filósofo italiano, pensando no precoce desaparecimento dos profetas na história do Ocidente, lembra que a tradição rabínica tende a encerrar o profetismo num passado ideal, que remonta à primeira destruição do Templo em 587 a.C. Com a morte do último nabi, o sopro sagrado afasta-se de Israel, no entanto, as "mensagens celestes" chegam aos homens através de bat kol, a "filha da voz", isto é, a tradição oral e o trabalho de leitura e interpretação da Torah. Para o cristianismo, uma vez que o "messias" veio à terra, os profetas perdem a sua razão de ser. Os enviados são, agora, apóstolos e não mais profetas.
Agamben chama a atenção para o fato de a tradição islâmica ligar a figura e a função do profeta a uma das duas obras ou ações de Deus. Para esta doutrina, há em Deus duas práxis diferentes: a obra de criação e a obra de salvação. Os profetas seriam mediadores da obra de salvação e os anjos da obra de criação. Curiosamente, ao contrário do que se poderia supor, a obra de salvação é entendida como anterior à de criação. Como a primeira obra - a de salvação -, é mais importante que a segunda - a de criação -, os profetas seriam mais importantes que os anjos, pois é a sua obra que torna compreensível a criação, dando-lhe sentido: "Maravilhoso é que a redenção do criado tenha sido confiada, não ao criador (ou aos anjos, que procedem diretamente do poder criador) mas a uma criatura". Isso significa que "não será o poder angelical (e em outras palavras, demoníaco) com que os homens produzem as suas obras,(...) mas o que lhes compete, mais humilde e corpóreo, enquanto criaturas, que salvará o mundo". Significa também que, no profeta, "os dois poderes de certo modo coincidem, que o titular da obra da salvação pertence, quanto ao seu ser, à criação".
Essas ações não estão trancafiadas em um passado remoto. Para Agamben, na cultura da época moderna, a filosofia e a crítica herdaram a obra profética da salvação, enquanto que a poesia, a técnica e a arte, herdaram a obra angélica da criação. Com a secularização da tradição religiosa, ambas perderam progressivamente a memória da relação que as ligava:

Onde, outrora, o poeta sabia dar conta da sua poesia ("Abri-la pela prosa" [Aprirla per prosa], dizia Dante) e o crítico era também poeta, o crítico, que perdeu a obra da criação, vinga-se sobre esta pretendendo julgá-la; o poeta, que já não sabe salvar a sua obra, compensa esta incapacidade entregando-se cegamente à frivolidade do anjo.


Dando um passo adiante nessa discussão, poderíamos pensar na crítica e na poesia como "dois rostos de um mesmo poder divino". Seguindo os argumentos de Agamben, poderíamos também considerar que a obra de criação é centelha que se soltou da obra profética, assim como a obra de salvação é "só um fragmento da criação angélica que se tornou consciente de si próprio".

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