sábado, 26 de abril de 2014

Arte e Política


Walter Benjamin, na conclusão de seu famoso ensaio "A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica", lembra que o fascismo esperava que a guerra proporcionasse a satisfação artística de uma percepção sensível modificada pela técnica. Para o filósofo, a autoalienação da humanidade atingira o ponto que lhe permitia viver sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem: "Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. O comunismo responde com a politização da arte" (1994). De um lado estaria Marinetti, trabalhando com a estetização da política, de outro, a serviço da politização da arte, estaria, por exemplo, John Heartfield, cujo trabalho foi analisado com atenção por Benjamin em um texto anterior, "O autor como produtor"[1], de 1934.
Penso que a frase final do ensaio de Walter Benjamin, interessada em situar o horizonte da estetização da política e da politização da arte em sua época, pode ainda hoje ser equacionada como problema, ajudando-nos a pensar na potencialidade da relação entre arte e política em tempos contemporâneos. Que pode ainda nos dizer o argumento final do filósofo? Se não é possível atualizá-lo - visto que o próprio já traz em si a força de sua sobrevivência, de sua (in)atualidade - como pensá-lo à luz do presente para além das categorias do fascismo e do comunismo, entendidas como quadros estáticos? Que significa hoje estetizar a política? Onde, entre nós, a politização da arte? Giorgio Agamben soube mostrar o quanto o fascismo sobrevive no tempo do presente[2]. Georges Didi-Huberman, por sua vez, soube mostrar o quanto a política das imagens pode corresponder a uma politização da arte[3]
Na já citada conferência "O autor como produtor", o fulcro central está pautado na reflexão de que a tendência política correta de uma obra inclui sua qualidade literária, porque inclui sua tendência literária, fato que para Benjamin pode consistir num progresso ou num retrocesso da técnica literária. Trata-se da ideia de que uma obra de arte só se sustentaria politicamente se primeiro se sustentasse esteticamente. Segundo Benjamin, “a tendência política, por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contrarrevolucionário enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de suas convicções, e não na qualidade de produtor” (1994). Portanto, sustentar-se esteticamente naquele momento passava pela possibilidade de um artista - com interesse revolucionário (político) - tornar-se um produtor. Benjamin recorre a Brecht para demonstrar que ele foi o primeiro a confrontar o intelectual com a exigência fundamental: “não abastecer o aparelho de produção, sem o modificar, na medida do possível, num sentido socialista” (1994). Nesse sentido, Brecht propõe inovações técnicas e não espirituais, como proclamavam os fascistas. O filósofo define o escritor rotineiro como o homem que renuncia por princípio a modificar o aparelho produtivo a fim de romper sua ligação com a classe dominante, em benefício do socialismo. Para Benjamin, uma parcela substancial da chamada literatura de esquerda não exerceu outra função social que a extrair da situação política novos efeitos, para entreter o público[4]:

Pense-se no dadaísmo. A força revolucionária do dadaísmo estava em sua capacidade de submeter a arte à prova da autenticidade. Os autores compunham naturezas-mortas com o auxílio de bilhetes, carretéis, pontas de cigarro, aos quais se associavam elementos pictóricos. O conjunto era posto numa moldura. O objeto era então mostrado ao público: vejam, a moldura faz explodir o tempo; o menor fragmento autêntico da vida diária diz mais do que a pintura. Do mesmo modo, a impressão digital ensanguentada de um assassino, na página de um livro, diz mais que o texto. A fotomontagem preservou muitos desses conteúdos revolucionários. Basta pensar nos trabalhos de John Heartfield, cuja técnica transforma as capas de livros em instrumentos políticos (1994).   

O que Benjamin está querendo dizer é que o trabalho artístico não deve visar somente à fabricação de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, a dos meios de produção. Abaixo, algumas montagens realizadas por John Heartfield. O artista confere a elas uma politização da arte, ao tornar-se produtor de formas. Goering é retratado como um açougueiro, Hitler como um cofre de dinheiro, e a fumaça produzida por aviões de guerra como uma alegoria da morte: 

      




Não muito distante dos dois ensaios citados de Benjamin, Brecht, mais especificamente em 5 de abril de 1942, anota em seu Diário de Trabalho a impotência que sente, como produtor de palavras líricas, diante da guerra: "Escrever poesia, mesmo poesia de circunstância, aqui é como se isolar numa torre de marfim. (...) É como meter uma mensagem dentro de uma garrafa" (2005). Debaixo dessa frase, Brecht inseriu uma fotografia de duas mulheres desesperadas diante dos cadáveres de seus filhos mortos, em Singapura, depois do bombardeio de 7 de dezembro de 1941. Didi-Huberman chama a atenção para esse grito prolongado que vai reaparecer na peça teatral Mãe Coragem. O que estaria em questão aqui é a memória dos sofrimentos padecidos, que aparece em Brecht sob a estola da guerra.
Benjamin (1994), em “Sobre Conceito de História”, dizia que o pensador e o historiador têm como função política a utilização da memória como “advertência de incêndios futuros”. Para Brecht, nos diz Didi-Huberman, o poeta e o dramaturgo devem colocar em cena “a imaginação dos sofrimentos futuros” sobre a base de uma “memória dos sofrimentos padecidos” (2008, p. 195). Nesse sentido, as montagens anacrônicas de Kriegsfibel (ABC ou Abecedário da Guerra), ou mesmo as do Arbeitsjournal (Diário de Trabalho), de Brecht, estariam destinadas a “retomar o enfoque teatral e lírico da dor do mundo” (2008). Ou seja, Brecht é produtor, pensa a política, a(r)mando a arte.


O mesmo teor patético que Didi-Huberman encontra numa das chapas de Kriegsfibel, ao se referir ao bombardeio de Singapura, e que sobrevive em Mãe Coragem, ele encontra em outra fotomontagem, na qual aparece uma mãe russa que, ao identificar o filho morto entre os cadáveres, abre os braços em forma de cruz: “A mulher russa que abre os braços em cruz diante do cadáver de seu filho baleado está ela mesma atravessada, conscientemente ou não, pela memória gestual, cultural e cultual da Pietà, quer seja como rito católico ou ortodoxo” (2008). Sob esse ponto de vista, estar na história significa necessariamente estar atravessado pela memória.
O Kriegsfibel e o Arbeitsjournal, de Bertolt Brecht, discutidos por Didi-Huberman, poderiam ser lidos como obras cujas imagens, pautadas pela montagem, estariam a serviço de uma politização da arte. O procedimento de montagem, por sua vez, estaria subordinado à imaginação.
                  



[1] Trata-se de uma conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo, em 27 de abril de 1934. 
[2] Jeanne Marie Gagnebin, na apresentação de O que resta de Auschwitz, de Agamben, observa que "Auschwitz"é a prova sempre viva de que o nomos (a lei, a norma) do espaço político contemporâneo - portanto, não só do espaço político específico do regime nazista - "não é mais a bela (e idealizada) construção da cidade comum (pólis), mas sim o campo de concentração" (in AGAMBEN, 2008). Nesse sentido, retoma a ideia do filósofo italiano que entende o campo como um espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se regra, na medida em que os seus habitantes são reduzidos, no contexto de uma biopolítica, à vida nua

[3] Ao analisar, por exemplo, o Arbeitsjournal (Diário de Trabalho), que Bertolt Brecht produziu durante a Guerra, bem como o seu atlas fotográfico da guerra, intitulado Kriegsfibel - nos quais o dramaturgo produz uma montagem singular com fotos e textos - Didi-Huberman percebe uma obra cujas imagens são capazes de tomar posição, ou seja, de possuir uma potência política. Nesse sentido, o processo de montagem "dis-põe" e "recompõe", criando novas relações entre os objetos: "Su valor político es por lo tanto más modesto y más radical a la vez, porque es más experimental: sería, hablando estrictamente, tomar posición sobre lo real modificando justamente, de manera crítica, las posiciones respectivas de las cosas, de los discursos, de las imágenes" (2008).

[4] Talvez esse tenha sido também o caso de boa parcela da "arte de esquerda" produzida no Brasil no período da ditadura militar. Em 1962, o Manifesto do Centro Popular de Cultura tenta sistematizar suas posições diante do quadro político e cultural do país. Considerando as próprias perspectivas revolucionárias que se apresentam ao homem brasileiro, o Manifesto postula o engajamento do artista e afirma que em nosso país e em nossa época, fora da arte política não há arte popular. Na arte popular revolucionária, o artista e o intelectual devem assumir um compromisso de clareza com seu público. Cabe ao artista realizar o laborioso esforço de adestrar os poderes formais a ponto de exprimir correntemente na sintaxe das massas os conteúdos originais. Heloísa Buarque de Hollanda revê a questão da arte e da política na produção cultural brasileira no período da ditadura militar de 64. Arnaldo Jabor, revendo sua própria participação na produção cepecista, escreveu: “A gente pensava que a fome era um caso de falta de informação: se o povo fosse bem informado, aconteceria a revolução, sem nos darmos conta da complexidade do problema” (JABOR apud HOLLANDA, 1980):

O laborioso esforço de captar a sintaxe das massas significa para o escritor a escolha de uma linguagem que não é a sua. Programaticamente ele abre mão do que seria a força do seu instrumento de trabalho, - a palavra poética – seu único engajamento de trabalho possível, - em favor de um mimetismo que não consegue realizar, não levando, inclusive, em conta o nível de produção do simbólico nessa mesma poética popular. Produz, então, uma poesia metaforicamente pobre, codificada e esquemática (HOLLANDA, 1980). 

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