Walter Benjamin, na conclusão de seu famoso ensaio "A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica", lembra que o fascismo esperava que a guerra proporcionasse a satisfação artística de uma percepção sensível modificada pela técnica. Para o filósofo, a autoalienação da humanidade atingira o ponto que lhe permitia viver sua própria destruição como um prazer estético de primeira ordem: "Eis a estetização da política, como a pratica o fascismo. O comunismo responde com a politização da arte" (1994). De um lado estaria Marinetti, trabalhando com a estetização da política, de outro, a serviço da politização da arte, estaria, por exemplo, John Heartfield, cujo trabalho foi analisado com atenção por Benjamin em um texto anterior, "O autor como produtor"[1], de 1934.
Penso
que a frase final do ensaio de Walter Benjamin, interessada em situar o
horizonte da estetização da política e da politização da arte em sua época,
pode ainda hoje ser equacionada como problema, ajudando-nos a pensar na
potencialidade da relação entre arte e política em tempos contemporâneos. Que
pode ainda nos dizer o argumento final do filósofo? Se não é possível atualizá-lo
- visto que o próprio já traz em si a força de sua sobrevivência, de sua (in)atualidade
- como pensá-lo à luz do presente para além das categorias do fascismo e do
comunismo, entendidas como quadros estáticos? Que significa hoje estetizar a
política? Onde, entre nós, a politização da arte? Giorgio Agamben soube mostrar
o quanto o fascismo sobrevive no tempo do presente[2]. Georges Didi-Huberman,
por sua vez, soube mostrar o quanto a política das imagens pode corresponder a
uma politização da arte[3].
Na
já citada conferência "O autor como produtor", o fulcro central está
pautado na reflexão de que a tendência política correta de uma obra inclui sua
qualidade literária, porque inclui sua tendência literária, fato que para
Benjamin pode consistir num progresso ou num retrocesso da técnica literária.
Trata-se da ideia de que uma obra de arte só se sustentaria politicamente se
primeiro se sustentasse esteticamente. Segundo Benjamin, “a tendência política,
por mais revolucionária que pareça, está condenada a funcionar de modo contrarrevolucionário
enquanto o escritor permanecer solidário com o proletariado somente ao nível de
suas convicções, e não na qualidade de produtor” (1994). Portanto, sustentar-se
esteticamente naquele momento passava pela possibilidade de um artista - com
interesse revolucionário (político) - tornar-se um produtor. Benjamin recorre a Brecht para demonstrar que ele foi o
primeiro a confrontar o intelectual com a exigência fundamental: “não abastecer
o aparelho de produção, sem o modificar, na medida do possível, num sentido
socialista” (1994). Nesse sentido, Brecht propõe inovações técnicas e
não espirituais, como proclamavam os fascistas. O filósofo define o escritor
rotineiro como o homem que renuncia por princípio a modificar o aparelho produtivo
a fim de romper sua ligação com a classe dominante, em benefício do socialismo.
Para Benjamin, uma parcela substancial da chamada literatura de esquerda não
exerceu outra função social que a extrair da situação política novos efeitos,
para entreter o público[4]:
Pense-se no dadaísmo.
A força revolucionária do dadaísmo estava em sua capacidade de submeter a arte
à prova da autenticidade. Os autores compunham naturezas-mortas com o auxílio
de bilhetes, carretéis, pontas de cigarro, aos quais se associavam elementos
pictóricos. O conjunto era posto numa moldura. O objeto era então mostrado ao
público: vejam, a moldura faz explodir o tempo; o menor fragmento autêntico da
vida diária diz mais do que a pintura. Do mesmo modo, a impressão digital ensanguentada
de um assassino, na página de um livro, diz mais que o texto. A fotomontagem
preservou muitos desses conteúdos revolucionários. Basta pensar nos trabalhos
de John Heartfield, cuja técnica transforma as capas de livros em instrumentos
políticos (1994).
O
que Benjamin está querendo dizer é que o trabalho artístico não deve visar
somente à fabricação de produtos, mas sempre, ao mesmo tempo, a dos meios de
produção. Abaixo, algumas montagens realizadas por John Heartfield. O artista
confere a elas uma politização da arte, ao tornar-se produtor de formas.
Goering é retratado como um açougueiro, Hitler como um cofre de dinheiro, e a
fumaça produzida por aviões de guerra como uma alegoria da morte:
Não
muito distante dos dois ensaios citados de Benjamin, Brecht, mais
especificamente em 5 de abril de 1942, anota em seu Diário de Trabalho a
impotência que sente, como produtor de palavras líricas, diante da guerra: "Escrever
poesia, mesmo poesia de circunstância, aqui é como se isolar numa torre de
marfim. (...) É como meter uma mensagem dentro de uma garrafa" (2005). Debaixo dessa frase, Brecht inseriu uma fotografia de duas mulheres
desesperadas diante dos cadáveres de seus filhos mortos, em Singapura, depois
do bombardeio de 7 de dezembro de 1941. Didi-Huberman chama a atenção
para esse grito prolongado que vai reaparecer na peça teatral Mãe Coragem. O que estaria em
questão aqui é a memória dos sofrimentos padecidos, que aparece em Brecht sob a
estola da guerra.
Benjamin
(1994), em “Sobre Conceito de História”, dizia que o pensador e o historiador têm
como função política a utilização da memória como “advertência de incêndios
futuros”. Para Brecht, nos diz Didi-Huberman, o poeta e o dramaturgo devem
colocar em cena “a imaginação dos sofrimentos futuros” sobre a base de uma
“memória dos sofrimentos padecidos” (2008, p. 195). Nesse sentido, as montagens
anacrônicas de Kriegsfibel (ABC ou Abecedário da Guerra), ou mesmo as do Arbeitsjournal (Diário de Trabalho), de Brecht, estariam
destinadas a “retomar o enfoque teatral e lírico da dor do mundo” (2008). Ou seja, Brecht é produtor, pensa a política, a(r)mando a arte.
O
mesmo teor patético que Didi-Huberman encontra numa das chapas de Kriegsfibel,
ao se referir ao bombardeio de Singapura, e que sobrevive em Mãe
Coragem, ele encontra em outra fotomontagem, na qual aparece uma
mãe russa que, ao identificar o filho morto entre os cadáveres, abre os braços
em forma de cruz: “A mulher russa que abre os braços em cruz diante do cadáver
de seu filho baleado está ela mesma atravessada, conscientemente ou não, pela
memória gestual, cultural e cultual da Pietà, quer seja como rito
católico ou ortodoxo” (2008). Sob esse ponto de vista, estar na
história significa necessariamente estar atravessado pela memória.
O Kriegsfibel e o Arbeitsjournal, de
Bertolt Brecht, discutidos por Didi-Huberman, poderiam ser lidos como obras
cujas imagens, pautadas pela montagem, estariam a serviço de uma politização da
arte. O procedimento de montagem, por sua vez, estaria subordinado à
imaginação.
[1] Trata-se de uma conferência
pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo, em 27 de abril de
1934.
[2] Jeanne Marie Gagnebin, na
apresentação de O que resta de Auschwitz,
de Agamben, observa que "Auschwitz"é a prova sempre viva de que o nomos (a lei, a norma) do espaço
político contemporâneo - portanto, não só do espaço político específico do
regime nazista - "não é mais a bela (e idealizada) construção da cidade
comum (pólis), mas sim o campo de
concentração" (in AGAMBEN, 2008). Nesse sentido, retoma a ideia do filósofo italiano que entende o campo como um espaço que se abre quando
o estado de exceção começa a tornar-se regra, na medida em que os seus
habitantes são reduzidos, no contexto de uma biopolítica, à vida nua.
[3] Ao analisar, por exemplo, o Arbeitsjournal (Diário de Trabalho), que
Bertolt Brecht produziu durante a Guerra, bem como o seu atlas fotográfico da
guerra, intitulado Kriegsfibel - nos
quais o dramaturgo produz uma montagem singular com fotos e textos -
Didi-Huberman percebe uma obra cujas imagens são capazes de tomar posição, ou
seja, de possuir uma potência política. Nesse
sentido, o processo de montagem "dis-põe" e "recompõe",
criando novas relações entre os objetos: "Su valor político es por lo
tanto más modesto y más radical a la vez, porque es más experimental: sería,
hablando estrictamente, tomar posición
sobre lo real modificando justamente, de manera crítica, las posiciones
respectivas de las cosas, de los discursos, de las imágenes" (2008).
[4] Talvez esse tenha sido também o caso de boa
parcela da "arte de esquerda" produzida no Brasil no período da
ditadura militar. Em 1962, o Manifesto do Centro Popular de Cultura tenta
sistematizar suas posições diante do quadro político e cultural do país.
Considerando as próprias perspectivas revolucionárias que se apresentam ao
homem brasileiro, o Manifesto postula o engajamento do artista e afirma que em
nosso país e em nossa época, fora da arte política não há arte popular. Na arte
popular revolucionária, o artista e o intelectual devem assumir um compromisso
de clareza com seu público. Cabe ao artista realizar o laborioso esforço de
adestrar os poderes formais a ponto de exprimir correntemente na sintaxe das
massas os conteúdos originais. Heloísa Buarque de Hollanda revê a questão da
arte e da política na produção cultural brasileira no período da ditadura
militar de 64. Arnaldo Jabor, revendo sua própria participação na produção
cepecista, escreveu: “A gente pensava que a fome era um caso de falta de
informação: se o povo fosse bem informado, aconteceria a revolução, sem nos
darmos conta da complexidade do problema” (JABOR apud HOLLANDA, 1980):
O laborioso esforço
de captar a sintaxe das massas significa para o escritor a escolha de uma
linguagem que não é a sua. Programaticamente ele abre mão do que seria a força
do seu instrumento de trabalho, - a palavra poética – seu único engajamento de
trabalho possível, - em favor de um mimetismo que não consegue realizar, não
levando, inclusive, em conta o nível de produção do simbólico nessa mesma
poética popular. Produz, então, uma poesia metaforicamente pobre, codificada e
esquemática (HOLLANDA, 1980).
Nenhum comentário:
Postar um comentário