quarta-feira, 30 de abril de 2014

O DOUTOR VERSUS O CHARLATÃO



Flora Süssekind, em um de seus "Papeis Colados", ao procurar determinar em que período se deu o início da “crítica moderna” no Brasil, observa:

(...) em sintonia com as primeiras gerações de formandos das faculdades de Filosofias, criadas nos anos 1930, percebe-se em meados da década de 1940 tensão cada vez mais evidente entre um modelo crítico pautado na imagem do homem de letras, do bacharel, e cuja reflexão, sob a forma de resenhas, tinha como veículo privilegiado o jornal; e um outro modelo, ligado à especialização acadêmica, o crítico universitário, cujas formas de expressão dominantes seriam o livro e a cátedra (2003).

Até os anos 50, a “crítica de rodapé” – ou seja, aquela produzida sob forma de resenhas, ensaios e impressões, que predominava na esfera jornalística – triunfou na esfera cultural. Tratava-se de uma crítica ligada à não-especialização. Segundo Süssekind (2003), ela oscilava entre a crônica e o noticiário puro e simples, cultivava a eloquência e visava a se adaptar às exigências e ao ritmo industrial da imprensa. Intelectuais como Agripino Grieco, Álvaro Lins, Wilson Martins e Otto Maria Carpeaux - herdeiros dos impressionistas do século XIX -  foram alguns de seus representantes. Eram eles os “homens de letras”, os praticantes de um impressionismo, de um autodidatismo que se contrapunha a uma geração de críticos formados pelas faculdades de Filosofia do Rio de Janeiro e de São Paulo, criadas na década de 30. Estes, por sua vez, estariam interessados na especialização, na crítica ao personalismo, na pesquisa acadêmica que envolvia os estudos literários. Sob o ponto de vista de Süssekind, do embate entre esses dois modelos distintos, modernizam-se os estudos literários no Brasil. Para os representantes do modelo acadêmico, os impressionistas seriam apenas “amadores”, não estando qualificados para produzir crítica. Segundo Süssekind, a palavra de ordem parecia ser a caça aos amadores:

Essa desqualificação do crítico amador lembra bastante a perseguição ao “charlatão” a partir de 1882, quando da criação das faculdades de Medicina no Brasil. É em oposição à figura deste médico sem diploma, ilegal, a que se denomina “charlatão”, que os “formados regularmente” afirmam publicamente a própria importância. E definidos como “verdadeiros médicos” aumentam sua área de influência na sociedade brasileira do século passado (2003).

Ainda no final do século XIX, vemos proliferar o modelo impressionista. No entanto, ao invés de perceber nela apenas o devaneio crítico, ou o mero trabalho de um charlatão, desprovido de especialização para o trabalho, podemos inverter o processo, e buscar nela sentidos obliterados pela tradição que lhe é adversária. 
Manifestações críticas que integram uma linhagem que poderíamos chamar de impressionista parecem funcionar como uma primeira tentativa entre nós - talvez ainda inconsciente -, de um pensamento que não deseja ser apenas criativo, mas também enigmático, no sentido proposto por Benjamin (2002), ou mesmo da negatividade de que nos fala Agamben (2007). Curiosamente, é também a crítica que foi menosprezada por boa parte dos pesquisadores, que muitas vezes a tratou pejorativamente como impressionista e falível, justamente por não ser sistematizada, como foi a “nova crítica”, que encontrou em Afrânio Coutinho um de seus adeptos mais fiéis no universo acadêmico brasileiro. 
Urge relermos figuras como Álvaro Lins, Agripino Grieco, Nestor Vitor etc.

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