"No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela"
Álvaro de Campos
A cada dia que passa me encanta mais o acaso. Nossa vida é em boa parte uma soma de seus incidentes. Certa vez, Roland Barthes escreveu que "privada de todo o comentário, a futilidade do incidente se põe a nu, e assumir a futilidade é quase heroico". Nos últimos tempos (perdoem-me a expressão apocalíptica ou quase evangélica) tenho me interessado em específico na relação entre o acaso e arte, na potência que brota dessa relação por vezes íntima e silenciosa. A força criadora do acaso, que aparece no poema Um lance de dados, de Mallarmé, e que hoje é investigado pela ciência nos estudos de física quântica, parece ser um dos grandes enigmas da arte. O que me move a escrever agora sobre isto? Que acaso é esse que também me apavora?
Nietzsche tem um belo texto sobre o
acaso. Em uma das reflexões de "A Gaia Ciência", mais especificamente
no fragmento de número 277, o filósofo batiza a acaso com o nome de
“Providência Pessoal” (eine persönliche Providenz). Para ele, o acaso guia a
nossa mão e toca conosco uma melodia. Seja o que for, bom ou ruim, o que o
acaso nos revela, sob seu ponto de vista, é o melhor possível. É o que tinha
que acontecer. Esse é o "destino"acaso: "Tudo o que nos toca
acaba sempre por ser para nosso maior bem".
A professora Rosa Dias, no texto "A
questão da criação para Nietzsche", discute os poderes do acaso na criação:
"O acaso é assim para Nietzsche um conjunto de coisas humanas, as mais
cotidianas. Vem sempre a nosso favor, pois traz o presente. Presente no sentido
temporal e presente como dádiva". Para ela, o acaso "não é um
incidente que devemos afugentar, mas o elemento essencial que determina a
plasticidade da vontade criadora. Se o que vem até nós, o inesperado que, de
algum modo, se espera que venha, surge como absolutamente necessário: se o
queremos, se o afirmamos com toda a nossa vontade, ele nos traz o presente e
impulsiona à ação, a uma ação criadora".
Não é outro o argumento de Clément Rosset. No livro A Anti
Natureza, esse filósofo contemporâneo, seguindo as pegadas de Nietzsche,
relaciona o conceito de trágico e de artifício com o de acaso: "(....) o
homem do artifício diz sim a uma instância puramente negativa (o acaso), a
qualquer coisa da qual sabe somente que é incapaz de pensar o que quer que
seja". Para ele, aprovar a existência é aprovar o trágico, ou seja, o
acaso.
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