Foto de Karo Yuki: Vaga-lumes
Em
junho de 2001, depois de visitar o Museu de Auschwitz, Didi-Huberman escreve o
belíssimo ensaio "Cascas", no qual por meio da montagem intercalada
de fotos do Museu a céu aberto e um texto poético-político, revisita não só as
atrocidades do campo, bem como os seus estudos presentes em "Imágenes pese
a todo". No bosque do campo de concentração, o historiador da arte extraiu
três pedaços de casca de uma árvore e depois de colocá-los sobre uma folha
de papel julgou que olhá-los poderia o ajudar a ler algo jamais escrito. As
cascas trazem ao nosso tempo ruínas de um outro. Assim como esses resíduos -
cascas de bétula -, as fotografias que integram o ensaio ajudam o ensaísta a
imaginar o inimaginável:
Apesar de agora vazio
de todos os atores de sua tragédia, este é claramente o lugar de nossa
história. O fogo da história passou. Partiu como a fumaça dos crematórios,
soterrado junto com as cinzas dos mortos. Isso significa que não há nada a
imaginar porque não há nada - ou muito pouco - a ver? Certamente não. Olhar as
coisas de um ponto de vista arqueológico é comparar o que vemos no presente, o
que sobreviveu, com o que sabemos ter desaparecido (2013).
Cada
uma das imagens que compõe o ensaio ajuda o ensaísta a escrever senão o
testemunho do campo, o inimaginável,
pelo menos um olhar; menos para capturá-lo do que para imaginá-lo, entendê-lo.
Em uma das imagens, por exemplo, aquela na qual vemos um lago,
Didi-Huberman enxerga as cinzas de judeus:
(...) A destruição
dos seres não significa que eles foram para outro lugar. Eles estão aqui,
decerto: aqui, nas flores dos campos, aqui, na seiva das bétulas, aqui, neste
pequeno lago onde repousam as cinzas de milhares de mortos. Logo, a água
adormecida que exige de nosso olhar um sobressalto perpétuo. As rosas
depositadas pelos peregrinos na superfície da água ainda flutuam, e começam a
murchar. As rãs saltam de todos os lados quando me aproximo da beira d'água.
Embaixo estão as cinzas. Aqui, temos de compreender que caminhamos no maior
cemitério do mundo, um cemitério cujos "monumentos" não passam de
restos de aparelhos concebidos precisamente para o assassinato de cada um
separadamente e de todos juntos (2013).
É
nesse sentido que Didi-Huberman nos convida, benjaminianamente, a olharmos como
arqueólogos. É, segundo ele, a partir de um olhar desse tipo que temos a
possibilidade de vermos que as coisas "começam a nos olhar a partir de
seus espaços soterrados e tempos esboroados" (2013). A alusão,
aqui, é ao texto "Escavar e lembrar", de Benjamin, para quem, na
esteira de Freud, a atividade do arqueólogo era capaz de esclarecer, "para
além de sua técnica material, alguma coisa de essencial à atividade de nossa
memória" (DIDI-HUBERMAN, 2013). O que significa que, para o
ensaísta, a arte da memória não se reduz ao inventário dos objetos trazidos à
luz. A arqueologia não é uma atividade interessada somente em explorar ao
passado, mas também um exercício para compreender o presente. A casca da bétula, mais do que um souvenir de
turista, é o fragmento de uma ruína que permite ao arqueólogo-ensaísta imaginar
o inimaginável. São páginas sobreviventes de um livro queimado. São lascas de
uma história irrepresentável que, por
meio da montagem de singularidades de imagens, se apresenta novamente no nosso
presente.
Didi-Huberman
encerra o ensaio lembrando que os latinos inventaram a palavra liber, que designa a parte da casca
ainda mais propícia que o próprio córtex a servir de suporte para a escrita:
Nada mais natural,
portanto, que ela tenha dado seu nome a coisas tão necessárias para inscrever
farrapos de nossas memórias: coisas feitas de superfícies, de lascas de
celulose decupadas, extraídas das árvores, onde vêm reunir-se as palavras e as
imagens. Coisas que caem de nosso pensamento e que denominamos livros. Coisas
que caem de nossos dilaceramentos, cascas de imagens e textos montados,
fraseados em conjuntos (2013).
O
que vemos no ensaio, além das cascas e da consequente possibilidade de imaginar
o inimaginável, é uma politização da
arte em um texto que mais do que pensar o passado, pensa o próprio presente.
Que podem os contemporâneos além de lembrar? Que lugar é esse do campo nos dias
de hoje? Que pode a arte diante dessas cascas, ou seja, ruínas? Que podem as
imagens nos mostrar, apesar de tudo? Que pode o ensaio nos fazer pensar em uma
arte que arma a sua própria ética, que inventa a sua própria estética? Ainda é
possível fazer experiência depois que os homens voltaram calados dos campos de
batalha, depois que Auschwitz virou museu? E Auschwitz, virou mesmo museu?
No
livro Sobrevivência dos Vaga-lumes (2011), Didi-Huberman, a partir de um
fragmento da Divina Comédia, de Dante[1], ensaia reflexões sobre a
arte e a política. O ensaísta confronta a pequena luz dos vaga-lumes de Dante,
com a obra de Pasolini, observando que o cineasta, em um texto sobre vaga-lumes,
indica, muito precisamente, que a arte e a poesia valem também como esses
pequenos lampejos, ao mesmo tempo eróticos, alegres e inventivos. Nesse
sentido, a própria obra de Pasolini poderia ser lida como um lampejo de
vaga-lume que, em meio à escuridão dos tempos obscuros, faz da arte uma pequena
luz de vaga-lume, ou seja, um gesto de resistência. Portanto, o gesto dos
vaga-lumes, além de ser uma questão de arte, é também uma questão política e histórica.
A dança dessas luzes voadoras é enfocada por Didi-Huberman como um momento de
graça que "resiste ao mundo do terror" (2011), sendo o que
existe de mais fugaz, de mais frágil. Pasolini, por meio dessa dança, reuniria
toda a violência do político, "associada, montada, com toda a doçura do poeta" (2011). Ou seja,
diante de sua obra estaríamos diante de uma constelação, ou seja, de uma
politização da arte.
Ainda que beirando o
chão, ainda que emitindo uma luz bem fraca, ainda que se deslocando lentamente,
não desenham os vaga-lumes, rigorosamente falando, uma tal constelação? Afirmar
isso a partir do minúsculo exemplo dos vaga-lumes é afirmar que em nosso modo
de imaginar jaz fundamentalmente uma condição para nosso modo de fazer
política. A imaginação é política, eis o que precisa ser levado em consideração
(2011).
A
frase está intimamente ligada aos textos de Didi-Huberman já citados neste
trabalho. O processo de politização da arte, ou mesmo do conhecimento, está
ligado, aqui, à possibilidade de imaginar, ou seja, montar. Para saber é
preciso imaginar. E a arte política que nasce desse ato de imaginar, mesmo
possuindo a pequena luz de um vaga-lume, tem a capacidade de iluminar o seu
próprio tempo. Essa pequena luz (arte), que guarda sua própria política
sobrevive na escuridão. São imagens sobreviventes que, segundo o ensaísta não
prometem nenhuma ressurreição. São apenas lampejos passeando nas trevas, "porque
elas nos ensinam que a destruição nunca é absoluta – mesmo que fosse ela
contínua -, as sobrevivências nos dispensam justamente da crença de que uma
“última” revelação ou uma salvação “final” sejam necessárias à nossa liberdade"
(2011).
Não nos cabe aqui esmiuçar a figura do
vaga-lume - o que mereceria, sem sombra de dúvida, outro texto -, mas apenas
observar que nessa pequena luz de vaga-lume pode ser encontrada a possibilidade
da sobrevivência de uma politização da arte e não de uma estetização da
política. Enquanto aquela jaz como pequena luz de vaga-lume, esta guarda a
grande iluminação dos refletores, os mesmos refletores que nos cegam ao
iluminar um grande comício fascista. Ou como nos diz Didi-Huberman, devemos nos
tornar vaga-lumes e, dessa forma, formar uma comunidade do desejo, uma
comunidade de lampejos emitidos, de danças apesar de tudo, de pensamentos a
transmitir: "Dizer sim na noite
atravessada de lampejos e não se contentar em descrever o não da luz que nos ofusca" (2011) Estaria na arte
alguns dos gestos mais políticos de nosso tempo? Confio nas pequenas luzes de
vaga-lumes como Pasolini, ou nas dos poetas que integram o livro virtual Vinagre, uma antologia de poetas neobarracos
(2013), organizado por Fabiano Calixto e publicado na rede poucos dias
depois das grandes manifestações ocorridas no Brasil em 2013.
Há
alguns dias, voltando para casa depois do trabalho,
caminhando pela rua, deparei-me com alguns vaga-lumes. Lembrei da forma como Didi-Huberman
encerra seu livro sobre Pasolini, depois de perguntar se os vaga-lumes
desapareceram, para responder que não: "Alguns estão bem perto de nós,
eles nos roçam na escuridão; outros partiram para além do horizonte, tentando
reformar em outro lugar sua comunidade, sua minoria, seu desejo
partilhado" (2011, p. 160). Cabe-nos aprender a ler em sua poesia, em suas
cascas de bétulas, em suas imagens, a sua a(r)mada política.
Obs: Silviano Santiago escreveu para o jornal estado de São Paulo uma bela crítica sobre o livro Sobrevivência de Vaga-lumes: "Revoada de Vaga-lumes" :
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,revoada-de-vaga-lumes,693993,0.htm
[1] No fragmento, que integra o vigésimo
sexto canto do Inferno, antes de encontrar a grande luz do Paraíso, Dante
reserva um destino discreto, embora significativo, à "pequena luz"
dos vaga-lumes.
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