A questão da origem da literatura brasileira é
amplamente discutida por historiadores e críticos. Esquece-me, muitas vezes, no
entanto, dos nós que se apresentam ao longo desta linha imaginária que poderia
ser chamada de história de nossa literatura. Diríamos que a questão da origem é
problemática e suscita aprofundamento. Apontamos para três grandes teses que
buscam direta ou indiretamente uma origem para a literatura brasileira. A
primeira, sustentada por Afrânio Coutinho, em Conceito de Literatura Brasileira, imagina no século XVI o nosso
legítimo começo. A segunda, de Antonio Candido, aponta em Formação da Literatura Brasileira para o século XVIII, momento
especial no qual um sistema literário é posto em funcionamento. E a terceira,
de Haroldo de Campos, que, criticando Candido, situa no século XVII nossa
gênese literária.
Geralmente, os estudos relativos à historiografia da
literatura brasileira tomam como ponto de partida o início do século XVI. Os
manuais didáticos tendem a reproduzir esse modelo. Entende-se como
"começo", neste contexto, a Literatura Informativa e/ou de Viagem,
bem como a literatura produzida por jesuítas, em solo brasileiro. José de
Anchieta, por exemplo. Esse é o argumento de Afrânio Coutinho. Segundo o
crítico, a literatura brasileira "iniciou-se no momento em que começou o
Brasil. É brasileira, desde o primeiro instante, tal como foi brasileiro o
homem que aqui se formou desde que o europeu aqui se implantou". Coutinho retoma o conceito de "obnubilação", desenvolvido por
Araripe Júnior, segundo o qual o europeu, ao chegar ao Brasil, sofreu um
relativo esquecimento dos laços afetivos que o ligava com a Europa e passou por
um processo de gradativo apego ao lugar que começava a colonizar. Essa
obnubilação foi responsável por gerar uma espécie de nativismo (amor à terra)
que mais tarde se transformaria em um nacionalismo (amor à pólis). Esse
processo marcaria, sob esse ponto de vista, desde o início da colonização uma
singularidade da literatura produzida no Brasil em relação àquela produzida em
Portugal.
Afrânio Coutinho
Em 1959, Antonio Candido, por sua vez, publica a sua
tese Formação da Literatura Brasileira,
na qual sustenta que a nossa literatura teria tido seu processo de formação em
meados do século XVIII com a produção de Cláudio Manuel da Costa. Para Candido,
é nesse momento que um sistema literário, pautado pela relação triádica entre
autor-obra-público, é posto em funcionamento no Brasil. Com a formação da
própria sociedade brasileira, com ímpeto de autonomia política - oriundo de um
sentimento de nacionalidade -, com o surgimento de Academias que congregavam
intelectuais, com o surgimento de escolas, bibliotecas e livrarias, um sistema
literário passa a esboçar um processo formativo de nossa literatura. Quando a
atividade dos escritores de um dado período se integra em um tal sistema,
ocorre, para Candido, um elemento decisivo: "a formação da continuidade
literária - espécie de transmissão da tocha entre corredores, que assegura no
tempo o movimento conjunto, definindo os lineamentos de um todo". As produções de escritores anteriores ao século XVIII, portanto, não serão
fundamentais para a formação de nossa literatura, sendo consideradas por
Candido como apenas "manifestações literárias" que não chegaram a
constituir um sistema. É o caso do barroco de Padre Vieira e de Gregório de
Mattos. Não deixa de ser lamentável a ausência do Barroco na tese de
Candido.
Antonio Candido
Haroldo de Campos em 1989, publica o seu estudo O sequestro do Barroco na Formação da
Literatura Brasileira: o caso Gregório de Mattos justamente para criticar a
ausência do Barroco, em especial a o do "Boca do Inferno" no panorama
de Candido. Para o poeta, crítico e tradutor concretista a qualidade estética
do nosso barroco, em especial o de Gregório de Mattos já mostra que há no
século XVII uma Literatura Brasileira adulta (1989).
Haroldo de Campos
Poderíamos aprofundar aqui a discussão, analisando,
por exemplo, os pontos fortes e fracos de cada uma dessas teses, abordando, por
exemplo, com Walter Benjamin, o problema da origem pensada como gênese, como
algo dado e acabado no tempo. Em Origem
do Drama Barroco Alemão, Benjamin observa que o conceito de origem deve ser
a partir da ideia de inacabamento e de vir-a-ser. Para ele, ela não significa
uma gênese: “A origem, apesar de ser uma categoria totalmente histórica, não
tem nada a ver com a gênese. O termo origem não designa o vir-a-ser daquilo que
se origina, e sim algo que emerge do vir-a-ser e da extinção”. Definir uma gênese seria, então, abandonar o conceito de origem
benjaminiano, caindo na busca de uma arké.
Estaríamos, então, diante de um problema de tempo, e da impossibilidade de
reduzi-lo à história. Impossível pensar no originário sem levar em conta que
ele é pautado pela restauração e pela reprodução, sendo, portanto, incompleto e
inacabado. Ou seja, seria impossível definir uma origem entendida como começo
no que se refere a nossa literatura.
Pelo que parece estamos fadados a escrever
e reescrever sempre isso que chamamos de história. Talvez seja melhor falarmos em "começos", ou mesmo pensar que a nossa literatura ainda está se fazendo como no giro de um torvelinho, nessa história anacrônica, em forma de espiral e não numa linha reta como costumeiramente se pensa aquilo que chamamos de história
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