Talvez fosse possível
pensar nas montagens de Valêncio como um caleidoscópio. Como jogo, como “caixa
de malícias visuais”, o caleidoscópio teria o poder de romper em todo momento o
contínuo da história e fazer interpenetrar-se um “passado da sobrevivência” com
um “futuro da modernidade”, ou seja, pressupõe de um lado a violência da
desmontagem, o caos, e do outro o valor do conhecimento, por meio do
procedimento da montagem, o saber. Suas imagens se fazem e refazem
constantemente como um rio em torvelinho. A fenomenologia do brinquedo teria
permitido a Benjamin, via Baudelaire, articular melhor o duplo regime temporal
de uma mesma imagem, “esta dialéctica en suspenso productora de una visualidad
al mismo tiempo 'originaria' (ursprünglich) y 'entrecortada' (sprunghaft), al
mismo tiempo turbulenta y estructural” (DIDI-HUBERMAN, 2006, p. 167). Isso
porque nas configurações visuais sempre entrecortadas do caleidoscópio está em
jogo a “polirritmia do tempo”, a “fecundidade dialética”. Estamos diante de uma
caixa inteligente, uma caixa de malícias, que propicia uma montagem de
“simetrias desmultiplicadas” – para usar expressões de Didi-Huberman – uma
caixa cujas imagens se disseminam e se renovam a cada movimento do objeto.
A imagem do “aparelho
mágico” ressurge em Jarry, na sua tentativa de superar a metafísica. O ser
deixa de ser concebido como um ente superior que fundaria a constância dos
demais entes percebidos, e passa a ser entendido como um Vazio ou um Não-ente,
ou seja, um “caleidoscópio mental irisado (que) se pensa” (JARRY apud DELEUZE, 1997, p. 105). O atlas,
entendido como caleidoscópio é, assim, uma máquina de fabricar o tempo e o
vazio.
Para finalizar
gostaria de lembrar que no caleidoscópio que é a ficção de Valêncio percebemos
um gesto que o aproxima não só de uma montagem cinematográfica como a de História do Cinema, de Godard, mas
também de livros-montagem como Guerra
camponesa no Contestado, de Jean-Claude Bernardet. Marilene Weinhardt
lembra que tanto Bernardet quanto Valêncio Xavier estão ligados à prática
cinematográfica. Em ambos, o princípio da montagem é explorado com presteza e a narrativa é composta por um conjunto
de reportagens, depoimentos, cacos da história que desconstroem a linearidade
tradicional, bem como o discurso unívoco: “Contemporaneamente, quando o
narrador se disfarça atrás de recortes e colagens, não busca a objetividade,
mas pluralidade. Ele não aparece, mas existe, está sempre lá, em cada escolha,
espiando pelas fendas entre os fragmentos” (WEINHARDT, 2000, p. 149). A
montagem da obra é sintoma de um anacronismo que aparece no interior dos
próprios objetos, sendo, assim, “el modo temporal de expresar a exuberancia, la
complejidad, la sobre-determinación de las imágenes” (DIDI-HUBERMAN, 2006, p.
18). A imagem desmonta a história, como se desmonta um relógio. Quando
desmontamos um relógio, ele deixa de funcionar. Essa suspensão, segundo o
historiador da arte, traz um efeito de conhecimento que seria impossível de
outro modo, permitindo que outro jogo seja armado, que uma nova montagem possa
ser realizada. E o que se torna visível, aqui, no atlas de Valêncio, é o tempo,
o que demonstra que o escritor assumiu aquela tarefa que Didi-Huberman (2011,
p.1) afirmou corresponder ao artista ou sábio, pensador ou poeta, que é: “(...)
converter tal visibilidade na potência de ver os tempos: um recurso para
observar a história, para poder manejar a arqueologia e a crítica política,
“desmontando-a” para imaginar modelos alternativos”.
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