Lembro de ter
chorado, copiosamente – e a expressão não é hiperbólica –, quando assisti, há
uns quinze anos, à sequência final de Cinema Paradiso (1988), filme do italiano
Giuseppe Tornatore. Recentemente, emocionei-me profundamente lendo o último
capítulo do romance “Vida e Proezas de Aléxis Zorbás”, do grego Nikos
Kazantzakis. Em ambos, a emoção suscitada parece brotar de uma certa beleza que
não sei explicar. Não costumo me derramar em lágrimas diante de qualquer dor ou
estímulo artístico, mas, às vezes, acontece. Nem sempre as emoções que a arte
nos proporciona são sublimes. O susto, o horror, o medo e a raiva, por exemplo,
fazem parte do universo artístico que também nos aprimora e que nos move para
dentro e fora de nós mesmos. A
literatura que mais me encanta é aquela que deixa em meu ser cicatrizes. Diante
da boa arte, transformo-me, nunca mais restando em mim o mesmo que sou. E a
marca que trago comigo é o resultado desse contato. São coisas que nos
constroem. Ando repleto, assim, de cicatrizes. O crítico e escritor José
Castello escreveu que a literatura é uma “máquina de perfuração do espírito.
Nele deixa marcas contundentes e feridas que nunca cicatrizam por completo
(...) Dor interminável, que se transforma em uma iluminação”. E a iluminação
nos salva.
A jovem poeta
Matilde Campilho - nascida em Cascais, em 1982 -, uma das grandes revelações da
poesia portuguesa, acredita que a arte pode não salvar o mundo ou uma vida, mas
salva momentos. Nos últimos cinco minutos de Cinema Paradiso, ou nas últimas dez
páginas de Zorbás, a arte salvou um momento meu e por causa disso minha vida
ficou mais bela e plena. Em uma
entrevista concedida ao jornalista Eric Nepomuceno, Matilde defendeu que a arte
fraqueja os joelhos quando é preciso, tira a atenção da dor em alguns momentos
e, em outros, leva a nossa atenção para a dor, porque, às vezes, estamos
distraídos para perceber seu real valor. Por isso escrevi que as emoções
propiciadas pela arte nem sempre são sublimes. Kafka, por exemplo, não me
trouxe conforto algum e, no entanto, saí de sua leitura positivamente
transformado.
Tenho me
emocionado lendo os poemas do livro “Jóquei”, de Matilde Campilho, lançado no
Brasil em 2015, um ano depois de vir a lume em Portugal. Principalmente quando
os leio em voz alta, tentando imitar seu lindo sotaque, tal como ele pode ser
ouvido em vídeo-poemas disponibilizados pela escritora no Youtube. Poemas
portugueses lidos em voz alta pedem uma leitura espirituosa. Chego a pensar, às
vezes, que o sotaque que simulo não chega a ficar tão falso quanto aquele de
Caio Castro, na novela das 18h, a imitar D. Pedro I.
Admiradora de
poetas estrangeiros como Antonio Cisneros, Octavio Paz, Carlos Drummond de
Andrade, João Cabral de Melo Neto, e dos conterrâneos Antonio Franco Alexandre
e Fernando Dias Pacheco, Matilde se apaixonou pelo Brasil e aqui morou durante
alguns anos. Depois de sua participação na Flip (Feira Literária de Parati), em
2015, a poeta se tornou mais conhecida no Brasil. Ler seus poemas é como
passear pelo Rio de Janeiro de seu coração, porque ali toda a cidade é poesia:
“Hoje se eu pudesse / eu voltava à cidade / só pra beijar / a cidade na boca”,
diz Campilho no poema “Eu já escuto teus sinais”, no qual faz referências à
famosa canção de Alceu Valença. O amor pela cidade parece ser suplantado apenas
pelo amor por uma pessoa, que paira como interlocutor e como fantasma durante
boa parte do livro. E essa comunhão com o outro é também uma comunhão com a
vida. E para a poeta ela é sempre mais importante que razão, a ciência, a
política ou a matemática. No poema “Dia de São Tomé”, ela escreve: “Com partido
político / dá sempre zero a zero / e vantagem do serviço / com partido alto /
dá sempre dez a dez / e vantagem do amor / você levou meu samba”. Em outro
poema, um sentimento semelhante: “Aprenderei a amar as casas / quando entender
que as casas / são feitas de gente / que foi feita por gente / e que contém em
si a possibilidade / de fazer gente”. Trata-se de perceber a natureza da vida
como algo acima do cálculo. O tema reaparece no poema “A primeira hora em que o
filho do sol brincou com chumbinhos”: “A matemática não é difícil se você
comparar tudo ao aparecimento de um cardume”.
No poema “Veleiro”: “A filosofia
é uma matemática muito esclarecedora e qualquer dia ainda vai salvar o mundo
(...) No que depender do amor, para além da paixão e para além do desejo:
ninguém mais se afogará”. A poeta vai passeando pela vida e guardando momentos:
as mãos do ser amado desenhando uma dança, o cheiro da maresia, o rosto doce de
Antonio por ela fotografado (talvez o poeta Antonio Cicero), os lábios de Dadá
pintados de vermelho, as folhas crescendo no vaso, o “brilho natural que
diariamente resplandece no peito da terra”, enfim, a vida acontecendo. A
poesia, assim, salva o instante da vida e a vida de nossos instantes.
Em uma das
passagens do poema “Notícias escrevinhadas na beira de estrada” a poeta escreve
que não é de choro fácil a não ser quando pensa em determinados milagres que
ainda não aconteceram. Ela olha com atenção para a vida e conclui que “a raça
humana é toda brilho”. Ao salvar esse momento talvez chore, como eu, ao
assistir ao final de Cinema Paradiso. E assim a arte vai salvando momentos.
Publicado originalmente no jornal O Caiçara,
em 18 de novembro de 2017,
União da Vitória
Nenhum comentário:
Postar um comentário