Na segunda-feira (20), em todo o território nacional,
comemorou-se o Dia da Consciência Negra, que acontece concomitante ao Dia
Nacional de Zumbi dos Palmares, devido à possível data de sua morte. Aproveito
o momento para perguntar aqui quais são os verdadeiros motivos que temos para comemorá-lo.
À força do afrodescendente e à alta qualidade da cultura negra em nosso país –
fundamentais para a nossa história, para nossa sensibilidade nacional, para
nosso presente e futuro – contrapõe-se o racismo velado ou explícito ainda
ativo na mediocridade daqueles a quem falta o bom senso. Há alguns dias, por
exemplo, redes sociais divulgaram um vídeo no qual um famoso apresentador da
Rede Globo, em uma gravação realizada durante as eleições presidenciais dos
Estados Unidos - ao irritar-se com o som de buzinas que atrapalhavam a matéria
-, cochicha a seu companheiro de trabalho: “É coisa de preto!”. O vídeo
viralizou e a emissora acabou afastando o jornalista. As expressões racistas
são tão recorrentes ainda no nosso dia a dia que é bem possível que os leitores
deste texto já tenham ouvido muitas vezes durante sua vida a frase “É coisa de
preto!”. E enquanto ela for proferida, estando consciente ou inconscientemente
atravessada por intenções racistas, uma margem da escravidão não terá terminado.
Prefiro inverter o seu sentido para celebrar a vida e a força dos negros e de
sua cultura entre nós.
É coisa de preto a obra de Machado de Assis, Cruz e Sousa e
Lima Barreto. Os três maiores escritores do final do século XIX e início do
século XX, no Brasil, eram negros, o que ironicamente desmonta as teorias
racistas vigentes naquele período. É coisa de preto a Geografia de Milton
Santos, bem como a arte de Emanoel Araújo. É coisa de preto a literatura de
Carolina Maria de Jesus e o inventivo talento musical de Pixinguinha, Donga,
João da Baiana, entre tantos outros. O samba na casa da Tia Ciata era coisa de
preto. A escultura barroca de Aleijadinho também. O Quilombo de Zumbi era coisa
de preto. Todos os outros Quilombos também. A prosa de Joel Rufino dos Santos é
coisa de preto, assim como a poesia de Elisa Lucinda, ou os textos de Conceição
Evaristo. A música de Caymmi, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Luiz Melodia,
Djavan, Jair Rodrigues, Wilson Simonal, é coisa de preto. O futebol de Leônidas
da Silva, Amarildo, Canhoteiro era coisa de preto também. A capoeira do Mestre
Pastinha. O cinema de Milton Gonçalves e Grande Otelo. É coisa de preto a voz
de Jamelão, as músicas de Lupicínio Rodrigues, e de Nelson Cavaquinho. O
sagrado de Mãe Menininha do Gantois, Mãe Senhora e Mãe Stella. É coisa de preto
a poesia de Vinícius de Moraes, que se considerava o branco mais negro do
Brasil. O trabalho de Abdias Nascimento, Beatriz Nascimento, Jurema Werneck é
coisa de preto. A performance musical de Paulo Moura e Johnny Alf também.
Poderia preencher páginas e páginas aqui. Faltaria espaço, então, celebramos
todos com um salve à negritude brasileira! Principalmente, àquela negritude
anônima que desde as senzalas até os trabalhos contemporâneos menos
reconhecidos atua bravamente no cotidiano desse imenso Brasil.
Recentemente, descobri uma jovem escritora africana que muito
me encantou. Falo de Chimamanda Ngozi Adichie. Ela ficou conhecida também por
alguns vídeos que circulam na internet, nos quais fala sobre questões políticas
de grande importância. Em um deles, discorre sobre os perigos de contarmos
apenas uma versão da história. Nele lamenta, por exemplo, a ausência de
personagens negras em contos de fadas e de heróis em geral.
Gostaria de usar o espaço que me resta para fazer uma
referência ao livro de contos “No seu pescoço”, de Adichie, traduzido e
publicado recentemente pela Companhia das Letras. No conto que dá nome à
coletânea, a escritora relata a vida de uma jovem nigeriana de Lagos que vai
tentar a vida universitária nos Estados Unidos. Um aspecto curioso do conto é o
fato dele ser narrado em segunda pessoa, mas retratando experiências da
primeira pessoa, como se o narrador escrevesse sobre si como sendo um outro, o
que demonstra possivelmente um determinada crise de identidade enfrentada pelo
ser estrangeiro. Em meio ao choque cultural, social e econômico que Akunna –
esse é o nome da personagem – encontra na América, a jovem sente na pele o
poder que a pele tem para torná-la vítima de um racismo atroz. A começar pelo
desconforto que vivencia em uma faculdade comunitária quando suas colegas olham
boquiabertas para o seu cabelo, perguntando se ele ficava de pé quando ela
soltava as tranças. Ao invés de responder, Akunna sorria de um jeito forçado.
Depois de sofrer tentativas de abuso sexual na casa onde estava hospedada,
muda-se para uma cidade que não possuía universidade comunitária. Lá, a jovem
trabalha muito por uma remuneração baixíssima e se aproxima de um jovem
americano que não a olha como um ser exótico, ao contrário da maioria das
pessoas. Com ele se relaciona, mas cedo percebe a distância que marcava
fortemente o encontro entre uma negra e um branco: “Pela reação das pessoas,
você sabia que vocês dois eram anormais – o jeito como os grosseiros eram
grosseiros demais e os simpáticos, simpáticos demais (...)”. Os homens e
mulheres brancos diziam “Que casal bonito”, “num tom alegre demais, alto
demais, como se quisessem provar para si próprios que tinham a mente aberta”.
Chimamanda Ngozi Adichie é uma escritora feminista que tem
levado para seus livros uma intensa reflexão sobre o racismo. Tem, nesse
sentido, feito um barulho na literatura contemporânea. Ao invés de lamentar
esse barulho, dizendo que é “coisa de preto!”, prefiro saudá-la como uma das
grandes revelações da atual ficção nigeriana. A sua arte é também e com muito
orgulho “coisa de preto”!
publicado originalmente no jornal Caiçara, em União da Vitória,
em 25 de novembro de 2017
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