Edição de O Rei da Vela com capa de Oswald de Andrade Filho
ATO 1: 1933, Oswald de Andrade, alguns
anos depois de publicar o romance experimental “Memórias Sentimentais de João
Miramar” (1924), o livro de poemas “Pau-Brasil” (1925), bem como o “Manifesto
da Poesia Pau-Brasil” (1924) e o “Manifesto Antropófago” (1928), escreve a
primeira peça de teatro modernista de nosso país, “O Rei da Vela”. Censurado
pelo Governo de Getúlio Vargas, o texto só seria encenado pela primeira vez
mais de trinta anos depois. A peça tem como tema a história de Abelardo I, um
burguês em ascensão que, no contexto da crise de 29, enriquece explorando por
meio de agiotagem seus devedores. O personagem também fabrica e vende velas,
pois com a crise financeira as empresas elétricas faliram. Em uma cena que
retrata uma conversa de Abelardo I com a esposa Heloísa, o protagonista revela
seu perfil de explorador ao observar que “num país medieval como o nosso”,
ninguém se atreve a passar pelos umbrais da eternidade sem uma vela na mão.
Assim, ele herda de cada finado nacional um tostão, pela tradição de se colocar
uma vela na mão de cada morto. Os devedores aparecem já no primeiro ato
enjaulados no escritório do usurário, sendo torturados e gradativamente
executados (nos dois sentidos da palavra). “O Rei da Vela” tem como pano de
fundo a presença de ingleses e norte-americanos, representantes do capital
estrangeiro, que são os verdadeiros donos do poder. A peça termina com o
assassinato do protagonista pelas mãos de seu funcionário ambicioso, Abelardo
II. O novo agiota casa com Heloísa de Lesbos, viúva do primeiro Abelardo, que
descendia de uma família aristocrata rural e falida. A peça, escrita na fase
mais socialista da obra de Oswald, evoca a decadência da burguesia e a
revolução social com base na ascensão do proletariado. No entanto, até que isso
aconteça, ambos continuarão “domados” pelo capital estrangeiro. O americano é o
último que aparece e fala na peça, dizendo: “Oh good business!”
Abelardo I, por Renato Borghi em 1967
ATO 2: Em 1967, durante a Ditadura Militar,
estreava no Teatro Oficina a peça de Oswald, montada pelo dionisíaco e
inventivo Zé Celso Martinez Corrêa. Curiosamente, a princípio, o espetáculo não
foi censurado. “O Rei da Vela” promoveu naquele período de intensa repressão
uma revolução cultural, pois a atualidade da linguagem teatral bem como o olhar
crítico do modernista convidavam o espectador a olhar de forma mais atenta para
a sua complexa realidade. Visualmente rica - lembrando por vezes uma chanchada
com ares expressionistas -, e tendo o ator Renato Borghi no papel principal, a
peça surpreendeu artistas como Caetano Veloso que nela se inspirou para a
criação do movimento tropicalista. A encenação teve para ele um impacto
semelhante ao cinema de Glauber Rocha – em especial do filme “Terra em Transe”
-, bem como ao romance experimental “Panamérica”, de José Agrippino de Paula.
Caetano escreveu em seu livro “Verdade Tropical” que tinha escrito a canção “Tropicália”
quando “O Rei da Vela” estreou e que assistir a essa peça representou para ele
“a revelação de que havia de fato um movimento acontecendo no Brasil. Um
movimento que transcendia o âmbito da música popular”.
Abelardo I, por Renato Borghi em 2017
ATO 3: outubro de 2017. Em comemoração
aos cinquenta anos da primeira montagem, o Teatro Oficina estreou uma
remontagem do mesmo espetáculo. Vivemos novamente em um tempo social e político
complexos, o que faz da peça uma obra atual, cuja potência é capaz de iluminar
nosso olhar sobre a realidade ou de pelo menos nos convidar a “enxergar” o
escuro em que estamos. A peça conta com a participação de alguns atores que
integraram o primeiro grupo, como Renato Borghi, que vive ainda o papel de
Abelardo I. Zé Celso, além de dirigir, atua como a virgem octogenária Dona
Poloca, senhora de boa moral e bons costumes, que na versão atual se apresenta
como transexual. A nova montagem faz referências aos dias de hoje, aludindo,
por exemplo, ao senador Aécio Neves (chamado na peça de Aécio Never) e ao
presidente Donald Trump.
Zé Celso e Renato Borghi, no Teatro Oficina
A remontagem acontece no mesmo período
em que o Teatro Oficina trava uma batalha com o Grupo Silvio Santos, por causa
de um terreno ao lado de sua sede. O Oficina defende que no terreno baldio em
seu entorno não sejam construídos prédios para especulação imobiliária, mas um
parque cultural que conservaria uma área verde na cidade de São Paulo e ainda
promoveria apresentações artísticas para a comunidade. No dia 23 de outubro, o
Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Turístico
do Estado de São Paulo) tomou decisão favorável ao Grupo Silvio Santos. Abelardo
I venceu o artista.
publicado originalmente no dia 11 de novembro de 2017,
no jornal O Caiçara, de União da Vitória
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