domingo, 12 de novembro de 2017

O Rei da Vela em três tempos



Edição de O Rei da Vela com capa de Oswald de Andrade Filho

ATO 1: 1933, Oswald de Andrade, alguns anos depois de publicar o romance experimental “Memórias Sentimentais de João Miramar” (1924), o livro de poemas “Pau-Brasil” (1925), bem como o “Manifesto da Poesia Pau-Brasil” (1924) e o “Manifesto Antropófago” (1928), escreve a primeira peça de teatro modernista de nosso país, “O Rei da Vela”. Censurado pelo Governo de Getúlio Vargas, o texto só seria encenado pela primeira vez mais de trinta anos depois. A peça tem como tema a história de Abelardo I, um burguês em ascensão que, no contexto da crise de 29, enriquece explorando por meio de agiotagem seus devedores. O personagem também fabrica e vende velas, pois com a crise financeira as empresas elétricas faliram. Em uma cena que retrata uma conversa de Abelardo I com a esposa Heloísa, o protagonista revela seu perfil de explorador ao observar que “num país medieval como o nosso”, ninguém se atreve a passar pelos umbrais da eternidade sem uma vela na mão. Assim, ele herda de cada finado nacional um tostão, pela tradição de se colocar uma vela na mão de cada morto. Os devedores aparecem já no primeiro ato enjaulados no escritório do usurário, sendo torturados e gradativamente executados (nos dois sentidos da palavra). “O Rei da Vela” tem como pano de fundo a presença de ingleses e norte-americanos, representantes do capital estrangeiro, que são os verdadeiros donos do poder. A peça termina com o assassinato do protagonista pelas mãos de seu funcionário ambicioso, Abelardo II. O novo agiota casa com Heloísa de Lesbos, viúva do primeiro Abelardo, que descendia de uma família aristocrata rural e falida. A peça, escrita na fase mais socialista da obra de Oswald, evoca a decadência da burguesia e a revolução social com base na ascensão do proletariado. No entanto, até que isso aconteça, ambos continuarão “domados” pelo capital estrangeiro. O americano é o último que aparece e fala na peça, dizendo: “Oh good business!” 

Abelardo I, por Renato Borghi em 1967

ATO 2: Em 1967, durante a Ditadura Militar, estreava no Teatro Oficina a peça de Oswald, montada pelo dionisíaco e inventivo Zé Celso Martinez Corrêa. Curiosamente, a princípio, o espetáculo não foi censurado. “O Rei da Vela” promoveu naquele período de intensa repressão uma revolução cultural, pois a atualidade da linguagem teatral bem como o olhar crítico do modernista convidavam o espectador a olhar de forma mais atenta para a sua complexa realidade. Visualmente rica - lembrando por vezes uma chanchada com ares expressionistas -, e tendo o ator Renato Borghi no papel principal, a peça surpreendeu artistas como Caetano Veloso que nela se inspirou para a criação do movimento tropicalista. A encenação teve para ele um impacto semelhante ao cinema de Glauber Rocha – em especial do filme “Terra em Transe” -, bem como ao romance experimental “Panamérica”, de José Agrippino de Paula. Caetano escreveu em seu livro “Verdade Tropical” que tinha escrito a canção “Tropicália” quando “O Rei da Vela” estreou e que assistir a essa peça representou para ele “a revelação de que havia de fato um movimento acontecendo no Brasil. Um movimento que transcendia o âmbito da música popular”.

Abelardo I, por Renato Borghi em 2017

ATO 3: outubro de 2017. Em comemoração aos cinquenta anos da primeira montagem, o Teatro Oficina estreou uma remontagem do mesmo espetáculo. Vivemos novamente em um tempo social e político complexos, o que faz da peça uma obra atual, cuja potência é capaz de iluminar nosso olhar sobre a realidade ou de pelo menos nos convidar a “enxergar” o escuro em que estamos. A peça conta com a participação de alguns atores que integraram o primeiro grupo, como Renato Borghi, que vive ainda o papel de Abelardo I. Zé Celso, além de dirigir, atua como a virgem octogenária Dona Poloca, senhora de boa moral e bons costumes, que na versão atual se apresenta como transexual. A nova montagem faz referências aos dias de hoje, aludindo, por exemplo, ao senador Aécio Neves (chamado na peça de Aécio Never) e ao presidente Donald Trump.

Zé Celso e Renato Borghi, no Teatro Oficina

A remontagem acontece no mesmo período em que o Teatro Oficina trava uma batalha com o Grupo Silvio Santos, por causa de um terreno ao lado de sua sede. O Oficina defende que no terreno baldio em seu entorno não sejam construídos prédios para especulação imobiliária, mas um parque cultural que conservaria uma área verde na cidade de São Paulo e ainda promoveria apresentações artísticas para a comunidade. No dia 23 de outubro, o Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo) tomou decisão favorável ao Grupo Silvio Santos. Abelardo I venceu o artista.

publicado originalmente no dia 11 de novembro de 2017, 
no jornal O Caiçara, de União da Vitória



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