Em tempos de
verão, calor e praia, nada como colocar entre nossos (in)utensílios de viagem
um bom livro para companhia nas horas de pura vadiagem ou momentos íntimos de
solidão. Uma boa literatura nos convida ao contato com o outro quando estamos
sozinhos, ao passo que nos permite um mergulho nesse mar que somos cada um de
nós, proporcionando uma forma de deixar-nos a sós em meio à algaravia do mundo.
Nessa temporada, para quem vai ou já voltou da praia, ou não foi nem irá, vale
a pena pisar nas areias do livro de ensaios “A vida descalço” (Cosac Naify,
2013), de Alan Pauls, traduzido por Josely Vianna Baptista. O autor é uma das
referências da atual literatura argentina, já tendo publicado no Brasil
romances como “O Passado”, que foi adaptado para o cinema por Hector Babenco,
bem como a bela trilogia sobre os anos 70, “História do pranto”, “História do
Cabelo” e “História do dinheiro”, que foge do lugar comum do revisionismo dos
anos de chumbo, promovendo uma singular experiência literária e afetiva.
“A vida
descalço” apresenta ensaios que têm a praia como tema e referência. Até aí nada
de muito interessante. No entanto, as imagens do livro, postas em movimento,
produzem uma constelação que faz de sua escrita um bem armado quebra-cabeça
cultural. Alan Pauls, em seus longos parágrafos, estabelece relações curiosas
entre objetos variados. Praia, corpo, erotismo, pele, beleza grupal, desejo,
literatura e cinema geram signos que inusitadamente se expandem à medida que
são postos em contato. A geografia da praia é a geografia do branco, da
virgindade, da nudez e é justamente devido a essa pureza que ela nos convida a “reescrituras
variadas”. Cada um enxerga no mar o que deseja. Essa parece ser a lógica do
ensaio também, gênero que se oferece sempre como uma escrita livre e
imaginativa. E explorar poeticamente um tema é uma forma, não só de expandi-lo,
mas também de colocá-lo em rede. Tal escrita faz lembrar por vezes o ensaísmo
de Roland Barthes.
Alan Pauls na praia de Copacabana
As referências
do livro vão desde o “Tubarão” (Steven Spielberg) até “À praia” (Danny Boyle),
passando pelo cinema de Fellini, Antonioni, Rodolfo Kuhn e Zinnemann. A cena
clássica do beijo entre Burt Lancaster e Deborah Kerr na praia de “A um passo
da eternidade” é evocada, bem como os protetores solares da Nívea e da
Copertone. Pauls lembra da Roma de Justiniano, o primeiro imperador que
regulamentou o “espetáculo do mar e da areia e que proibiu as edificações a
menos de trinta metros da costa para proteger as vistas”. Com a queda do
Império Romano, a cultura judaico cristã passará a questionar severamente o
hedonismo, promovendo uma repressão contra o corpo. A praia passa a ser vista
como sintoma de monstruosidade. Essa censura parece sobreviver até os anos 60 e
70 do século vinte quando as roupas de banho deixam de ser tão pudicas e o
corpo volta a ser assumido em sua plenitude, a ponto de hoje ficar escondido apenas
por poucos centímetros do biquíni.
Em um dos
textos, Pauls relaciona a praia com o reino do sonho e do cinema. O autor
observa que sonha-se muito na praia. Isso porque ela é um território livre de
imagens: “os sonhos, com suas imagens virtuais, são para a praia o que as
miragens são para o deserto: a outra cena de um espaço. (As imagens não podem
coexistir com o espaço: só aparecem quando o espaço real se dissipou no sono ou
na alucinação)”. Nesse sentido, como sugere em um texto seguinte, se a praia
fosse um tela de projeção seria uma tela em branco, “cinema virgem”, que não
fascina pelo que irradia, e sim “por todas as imagens que era capaz de
suscitar”. Essa liberdade é a mesma que faz com que a praia seja o único espaço
público onde, segundo Pauls, “a nudez quase completa não é uma exceção nem uma
infração provocadora, e sim um princípio de existência, uma forma de vida, a
lei – tácita e unânime, mas não coercitiva – que rege a convivência humana”.
Alan Pauls na infância, na praia
Segundo Pola
Oloixarac, Alan Pauls, desafiando os lugares-comuns tanto do pensamento como do
prazer, “apresenta a praia como o ambiente de imaginação”. O livro nos conduz
“à praia da infância do narrador, às ficções estivais de François Ozon e Eric
Rohmer, às areias do Rio de Janeiro dos anos 70, às fantasias ascéticas da
antipraia invernal”. Em todos os casos a praia parece produzir um “outro lugar”
à margem da vida que costumamos viver.
Alan Pauls
encerra seus ensaios relembrando uma passagem vivida em sua infância quando,
doente e impossibilitado de ir à praia, ficara em casa lendo um livro. Para
ele, esse livro é o verdadeiro “outro lugar” que tem a forma da felicidade.
Segundo o autor, talvez não tenha havido dias em nossa infância “mais
plenamente vividos do que aqueles que passamos com o livro pelo qual mais
tarde, uma vez que o tenhamos esquecido, estaremos dispostos a sacrificar
tudo”. Uma boa praia e um bom livro parecem ser assim o sinônimo da própria
felicidade perfeita. Em ambos, a liberdade plena é condição para a própria
existência.
Publicado originalmente no jornal Caiçara, de União da Vitória, em 23 de fevereiro de 2018
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