Entrando nos
dias de folia carnavalesca, há quem troque a bagunça por um retiro no campo ou
aproveite para ler aquele velho livro desejado com direito a pausas para
assistir na TV ao desfile da Escola de Samba preferida: Mangueira, Portela, ou
Salgueiro (esta, apreciada incondicionalmente pelo meu amigo Jessé), só para
citar as mais tradicionais. Eu, evocando aqui os meus tempos de piá, trocaria a
Sapucaí por um desfile da “Vai quem quer” ou da “Zé Totó” (extintas e saudosas
Escolas de Samba de nossas cidades, cuja lembrança reforça em mim o sentido
dessas singelas e autênticas manifestações de nossa cultura popular), que
faziam a festa na Avenida Manoel Ribas, com direito a Rei Momo, passistas e
carros alegóricos. Onde andam seus ritmistas? Essas reminiscências evocam
outras. A memória é uma teia infinita tecida pela aranha do tempo.
Lembro de uma
crônica sobre o carnaval escrita por Lima Barreto e publicada em fevereiro de
1920 (mais tarde reunida no livro “Feiras e Mafuás”), na qual o autor lamenta
pelas transformações da festa já em seu tempo. O seu aborrecimento era em
específico pela falta de inteligência das músicas que circulavam na época
durante o evento. Menos preocupado com a “imoralidade” e a “chulice” que
apresentavam e mais com o aspecto intelectual e artístico, Lima apontava para
cantigas sem nexo algum, nas quais predominava uma “pobreza de pensamento”. Ele
se referia a canções como “Fala meu loro”, um partido alto de Sinhô,
tradicional compositor carioca. Sabe-se da qualidade musical não só desse
baluarte do samba, mas de tantos outros músicos populares da época,
possivelmente ainda incompreendidos por Lima Barreto e certamente depreciados
por boa parte da cultura oficial.
Sinhô
O autor de “Triste
fim de Policarpo Quaresma” valorizou amplamente a cultura popular, mas não
conseguiu aprovar com unanimidade a produção musical carnavalesca da época.
Isso se deu possivelmente pelo baixo nível de complexidade das letras desse
cancioneiro, menos preocupado com a sofisticação estética e mais com o desejo
de “cair na boca do povo”, sendo assim facilmente conhecido, memorizado e
apreciado. Fico imaginando o que Lima Barreto pensaria do carnaval atual no
qual impera o gênero sertanejo universitário e o funk. Os carnavais agora são
bem outros e de longe se parecem com os bailes do Clube Aliança ou do Concórdia
de vinte ou trinta anos atrás.
Carnaval antigo em Porto União da Vitória
Para quem
prefere nesses dias de folia se exilar do “proibidão” (termo que segundo Liliam,
minha colega de trabalho, refere-se ao funk carioca) e do sertanejo
universitário (nada contra os dois estilos – sou eclético -, mas carnaval é
tempo de samba e marchinha), sugiro a leitura do romance “Desde que o samba é
samba” (Planeta, 2012), de Paulo Lins.
Ambientado no
Rio de Janeiro dos anos 20, e tendo como pano de fundo o surgimento do samba em
casas de macumba como a da Tia Ciata, bem como a Praça Onze, o livro retrata a
história de um triângulo amoroso entre uma prostituta, Valdirene, um malandro
cafetão, Brancura, e um português, Sodré. Misturando realidade e ficção, a obra
de Paulo Lins conta com uma narrativa ágil (que beira o cinematográfico), com
uma linguagem popular – com direito a expressões típicas da época -, bem como
com uma exímia reconstituição geográfica, a do belo Rio antigo.
Foliões no Rio de Janeiro dos anos 20
Silvio
Fernandes, vulgo Brancura, por exemplo, existiu e fez parte da Turma do
Estácio, grupo de sambistas que foram responsáveis pela criação de uma
tradicional escola de samba e pela consolidação de seu gênero musical. Baiaco,
Bide, Ismael, entre outros, integraram o grupo, sendo agora transformados em
personagens. Modernistas como Mário de Andrade e Manuel Bandeira também. Carmem
Miranda, por exemplo, aparece visitando um terreiro de Umbanda, religião que
estava se disseminando pela cidade junto com o samba. Segundo Heloísa Buarque
de Hollanda, “Desde que o samba é samba” é uma incrível cartografia do mundo da
malandragem (e mesmo da violência) nos bairros e morros onde a cultura carioca
foi gestada”.
Deixa Falar (Escola de Samba criada pelo Grupo do Estácio
O livro não se
furta de apresentar de forma realista cenas de sexo e violência. Uma das
curiosidades do romance é o fato de ter abordado de forma aberta e sem
preconceito a homossexualidade de figuras como Ismael Silva e Mário de Andrade,
cuja intimidade ainda hoje é tratada com ressalvas por pesquisadores e
biógrafos. Lembremos que Paulo Lins escreveu também o romance “Cidade de Deus”,
adaptado para o cinema.
Paulo Lins
Obs: O título
deste texto, “Carnaval, samba, malandros e heróis: coisas nossas” é inspirado
no livro de crônicas “Coisas Nossas”, de Luiz Antonio Simas – mestre-sala da
literatura contemporânea no que se refere à cultura popular carioca, lembrando
cronistas como João do Rio e Lima Barreto -, e inspirado também no livro “Carnavais,
malandros e heróis”, de Roberto DaMatta, que reflete sobre a essência ou
especificidade da sociedade brasileira, tomando a figura do carnaval, dos
malandros e dos heróis como criações sociais capazes de explicar ou de pelo
menos fornecer um modelo de interpretação para a vida do brasileiro.
Brancura (Silvio Fernandes), personagem do livro
A leitura do
livro de crônicas do Simas também é uma boa pedida para o período do carnaval.
Cenas carnavalescas do passado, blocos de rua, desfiles, fantasias tropicais,
brincadeiras de antigamente, rodas de macumba, quitandas e bares, formam uma
“espécie de roteiro sentimental de uma cidade que talvez nunca tenha existido”,
como escreveu o autor, mas que certamente vive nele. Bom carnaval a todos!
Publicado originalmente no jornal Caiçara, em União da Vitória, 16 de fevereiro de 2018
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