Em 1966, antes
de viajar para a Bolívia onde foi assassinado em seu projeto revolucionário,
Che Guevara passou alguns dias em Curitiba e no norte do Paraná. Durante suas
andanças pelo Estado, o guerrilheiro, que já estava se transformando em mito,
carregou consigo uma Bíblia na qual teceu anotações cujo conteúdo nos é
desconhecido. A revelação é no mínimo curiosa, já que o líder era um socialista
convicto. Décadas depois, o livro se transformaria em objeto de procura e de
culto entre ex-militantes da esquerda e colecionadores de obras raras.
A visita de
Guevara, que nunca foi confirmada oficialmente, é mote para o enredo do romance
“A Bíblia do Che” (Companhia das Letras, 2016), de Miguel Sanches Neto, autor de
uma produção literária que nos últimos anos tem caminhado para um alargamento
das fronteiras entre a história e a ficção.
Che disfarçado
"1966, sete horas e meia de
viagem de São Paulo à Curitiba. O ônibus de Guevara chega atrasado na Rodoviária
velha, na João Negrão. Seu contato não o esperava na plataforma conforme
combinado. Nos ônibus só se podia fumar cigarros, pensando no que fazer
Guevara acende um charuto cubano, com o anel trocado para não denunciar
sua origem. Em pé, a maleta entre as pernas, esperou para ver se o contato aparecia.
De terno e gravata, óculos, sem barba, e com os cabelos tingidos esbranquiçados
mais parecia um pacato burguês de meia idade do que o jovem e temido
guerrilheiro"
(Valêncio Xavier, Gazeta do Povo, 09 de março de 1997)
Em “Um amor
anarquista”, por exemplo, o autor recria um triângulo amoroso entre moradores
da Colônia Cecília (Palmeira-PR), que foi uma primeira tentativa de comunidade
anarquista no Brasil do final do século XIX. Em “Chá das 5 com o vampiro”, são
reveladas as intimidades do escritor Geraldo Trentini, uma alusão ao escritor
Dalton Trevisan, que fora amigo de Miguel. O livro rendeu uma série de
polêmicas, e inclusive uma possível resposta do “vampiro”, em um texto ácido
que integra uma de suas publicações. O romance trata, em certo sentido, das vaidades
que acompanham os literatos no mundo das letras. Em “A máquina de madeira”,
narra-se a trajetória do Padre Francisco João de Azevedo, precursor na invenção
da máquina de escrever. A narrativa é pretexto para o autor refletir sobre a
formação da identidade de nosso país e sobre os processos de modernização no
final do século XIX. Em “A segunda pátria”, reconstitui-se a cidade de Blumenau
durante o advento da Segunda Grande Guerra. O protagonista, Adolpho Ventura, é
um negro que sofre com o racismo e a ascensão do nazismo em Santa Catarina. Em
uma das passagens mais curiosas do livro, Hitler visita o Brasil, episódio que
permite a Sanches Neto, na liberdade da ficção, inscrever novos sentidos para
uma história tal qual poderia ter sido, como faz Tarantino em “Bastardos
Inglórios”.
Miguel Sanches Neto
Em todos esses
romances percebe-se uma tendência à metaficção historiográfica, um conceito
criado e discutido por Linda Hutcheon que pode ser encontrado em obras que
tencionam os limites entre a literatura e a história, misturando assim
realidade e ficção, o que vemos com recorrência na obra, por exemplo, de Jô
Soares. É o que acontece também em “A bíblia do Che”.
O episódio que
dá origem ao livro pode não ser verídico, mas é verossímil (documentos oficiais
chegaram a abordar a viagem de Che ao Paraná em plena ditadura militar), e tem
alimentado o nosso imaginário. Miguel Sanches Neto não foi o primeiro a
escrever literariamente sobre o assunto. Em 2003, Valêncio Xavier publicou na
“Folha de São Paulo” um conto (aliás, apresentado anteriormente na Gazeta do
Povo nos anos 90) que tem como tema a mesma visita secreta. Valêncio, que
também era cineasta, sonhava em filmar o argumento.
“A bíblia do
Che” tem como narrador um personagem já conhecido de Miguel, que já aparece no
romance “A primeira mulher” (Record, 2008), o professor Carlos Eduardo Pessoa.
Alguns anos depois de sua primeira aparição, Pessoa, agora ex-professor, vive recluso
em uma sala comercial do edifício Asa, no centro de Curitiba e é convidado a
uma nova aventura, envolvendo a procura da Bíblia do Che em meio a uma trama
policialesca que conta com empresários corruptos e várias perseguições.
O protagonista
envolve-se com Celina, a jovem e sonhadora viúva de um lobista envolvido em um
esquema de desvio de verbas de empresas estatais em uma rede de corrupção que
integra uma série de partidos. Antes de sua morte misteriosa, o lobista passa a
ser investigado em uma megaoperação. Qualquer relação com a Lava Jato não é
mera coincidência. À medida que Carlos Eduardo Pessoa procura a Bíblia, uma
relíquia, investiga a morte de Jacinto Paes, o lobista que o contratou para
encontrá-la.
Celina passa a
ser perseguida pelos possíveis assassinos de seu marido e a narrativa acaba
migrando para a Bolívia, na localidade onde Che viveu seus últimos dias. Mais
do que isso é bom não adiantar. Celina é peça-chave.
Che morto na Bolívia (1967) e "O Cristo morto", de Andre Mantegna (séc. XV)
O mito se consolida
Miguel Sanches
Neto se inspira na política contemporânea, bem como na crise da esquerda, para
refletir também sobre as ruínas de uma série de ideais revolucionários que não
morreram, mas que religiosamente parecem agonizar, enquanto procuram sobreviver
em tempos de crise.
Texto publicado originalmente no jornal Caiçara (União da Vitória PR) em 03 de fevereiro de 2018.
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